Depois de ter distribuído pelo WhatsApp um texto segundo o
qual o País é “ingovernável” sem os “conchavos” políticos e de dizer que conta
“com a sociedade” para “juntos revertermos essa situação”, o presidente Jair
Bolsonaro voltou a fazer apelos diretos ao “povo” contra o Congresso – em
relação ao qual nutre indisfarçável desprezo, embora tenha sido obscuro
parlamentar durante 28 anos.
Cresce a inquietante sensação de que Bolsonaro decidiu
governar não conforme a Constituição e com respeito às instituições
democráticas, mas como um falso Messias cuja vontade não pode ser contrariada
por supostamente traduzir os desejos do “povo” e, mais, de Deus.
Ao que parece, Bolsonaro passou a acreditar de fato na
retórica salvacionista que permeou sua campanha eleitoral, alimentada por
alguns assessores e pelos filhos com o intuito de antagonizar o Congresso –
visto como o lugar da “velha política” e, portanto, como um obstáculo à
regeneração prometida pelo presidente.
Ao cabo de cinco meses de governo, em que todos os
indicadores sociais e econômicos apresentaram sensível deterioração, fruto de
sua inação administrativa e da descrença generalizada e cada vez maior na sua
capacidade de governar, Bolsonaro começa a flertar com a “ruptura
institucional”, expressão que apareceu no texto que o presidente chancelou ao
distribuí-lo na sexta-feira passada.
Diante da repercussão negativa, Bolsonaro, em lugar de
serenar os ânimos e demonstrar seu compromisso com a democracia representativa,
estabelecida na Constituição, preferiu ampliar as tensões, lançando-se de vez
no caminho do cesarismo.
Ao comentar o texto de teor golpista que passou adiante pelo
WhatsApp, Bolsonaro disse que “esse pessoal que divulga isso faz parte do povo
e nós temos que ser fiéis a ele”. E completou: “Quem tem que ser forte, dar o
norte, é o povo”.
Ora, o mesmo povo que o elegeu para se ver livre das proezas
lulopetistas elegeu 81 senadores e 513 deputados, além de legisladores e
governantes estaduais.
Depois, divulgou em seu perfil no Facebook o vídeo de um
pastor congolês que diz que Bolsonaro “foi escolhido por Deus” para comandar o
Brasil.
“Pastor francês (sic) expõe sua visão sobre o futuro do Brasil”,
explicou o presidente, que completou: “Não existe teoria da conspiração, existe
uma mudança de paradigma na política. Quem deve ditar os rumos do país é o
povo! Assim são as democracias”.
O ilustre salvador talvez conheça a história do Congo, porque
a do Brasil ele definitivamente ignora.
No vídeo que Bolsonaro endossou, o tal pastor, um certo
Steve Kunda, diz que, “na história da Bíblia, houve políticos que foram
estabelecidos por Deus”, como “o imperador persa Ciro”, e que “o senhor Jair
Bolsonaro é o Ciro do Brasil, você querendo ou não”.
E o pastor lança um apelo aos brasileiros: “Não passe seu
tempo criticando. Juntem as forças e sustentem esse homem. Orem por ele,
encorajem-no, não façam oposição”.
Em condições normais, tal exegese de botequim seria tratada
como blague, mas não vivemos tempos normais – pois é o próprio presidente que,
ao levar tais cretinices a sério, parece de fato considerar sua eleição como
parte de uma “profecia”.
O resumo dessa mixórdia mística é que Bolsonaro acredita ser
um instrumento de Deus e o porta-voz do “povo” – nada menos.
Portanto, quem quer que se oponha a Bolsonaro – puxa! – não
passa de um sacrílego.
Com 13 milhões de desempregados, estagnação econômica e
perspectivas pouco animadoras em relação às reformas, tudo o que o País não
precisa é de um presidente que devaneia sobre seu papel institucional e
político e que, em razão disso, estimula seu entorno e a militância
bolsonarista – a que Bolsonaro dá o nome de “povo” – a alimentar expectativas
sobre soluções antidemocráticas, como um atalho para a realização de
“profecias”.
O reiterado apelo de Bolsonaro ao “povo” para fazer valer
uma suposta “vontade de Deus” envenena a democracia e colabora para a ampliação
da cisão social entre os brasileiros e destes com a política.
A esta altura, parece cada vez mais claro que Bolsonaro não
estava para brincadeira quando disse, em março, que não chegou ao governo para
“construir coisas para nosso povo”, e sim para “desconstruir muita coisa”.
Espera-se que a democracia brasileira e suas instituições
resistam a essa razia.
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