O decreto de Jair Bolsonaro confere o direito ao porte de
armas a, pelo menos, 19 milhões de pessoas. Suas referências aparentes são o
cenário legal dos EUA e o discurso da Associação Nacional do Rifle (NRA). O
paralelo faz algum sentido, do ponto de vista das prováveis implicações da
iniciativa presidencial, especialmente a multiplicação de tiroteios em massa.
Contudo, trata-se de realidades profundamente distintas: aqui, são as milícias
os principais beneficiários da tentativa de flexibilização da lei.
A Segunda Emenda da Constituição americana, que assegura os
direitos de posse e porte de armas, foi adotada em 1791 num país de colonos
armados nascido da Guerra de Independência. A geração de legisladores que a
formulou também proibiu a posse de armas por escravos e, em vários estados,
inclusive por negros libertos. Bem mais tarde, após a Guerra Civil (1861-65),
os estados sulistas adotaram leis raciais (Black Codes) que, entre outras
coisas, vetavam a posse de armas pelos negros.
Na aurora do século 20, face ao influxo de imigrantes
irlandeses e do Sul da Europa, leis estaduais e locais restringiram o direito
ao porte de armas. Fundada em 1871, a NRA apoiou tanto aquelas leis quanto os
atos legislativos nacionais de 1934 e 1938 que limitaram a venda e o porte. Uma
nova lei restritiva nacional foi adotada em 1968, sempre com apoio da NRA,
destinada a desarmar os Panteras Negras. O giro ocorreu na década de 1980,
quando nasceu o moderno movimento pró-armas, branco e conservador, que professa
ideias libertárias e, ironicamente, ecoa o direito à defesa contra um governo
tirânico reivindicado pelos militantes negros radicais.
O Brasil não se reconhece no espelho dos EUA. Não
experimentamos uma guerra popular de independência e, à exceção de áreas do
Sul, marcadas pelos conflitos bélicos do século 19, a posse de armas nunca se
difundiu extensivamente. O contraste vai mais longe: por aqui, as leis de
restrição ao acesso às armas não obedeceram a motivações raciais ou
identitárias. Finalmente, o discurso anarco-libertário, individualista e de
aversão à “tirania estatal”, carece de raízes em terras brasileiras. Na
política de armas do bolsonarismo, o mimetismo é uma dimensão apenas retórica.
O decreto presidencial estende o direito ao porte às mais
diversas categorias, libera o uso de armas de alta letalidade, como pistolas
.40 ou de 9mm, e multiplica por cem a quantidade de munição que pode ser
comprada. O argumento oficial, uma mentira escancarada, é que, por essa via, o
governo obedece à vontade manifestada no referendo de 2005. De fato, porém, o
voto majoritário limitou-se a derrubar o artigo do Estatuto do Desarmamento que
proibia genericamente a comercialização de armas e munições.
O sentido do decreto ilegal é menos ideológico que prático.
Para decifrá-lo, convém recordar as palavras de Flávio Bolsonaro na Alerj, em
2007, dois anos após sua homenagem oficial ao miliciano Adriano da Nóbrega: “A
milícia nada mais é do que um grupo de policiais, regido por uma certa
hierarquia ou disciplina, buscando expurgar do seio da comunidade o que há de
pior: os criminosos”. O então deputado estadual não se circunscreveu ao
diagnóstico benevolente, saltando ao elogio explícito: “Há uma série de
benefícios nisso: eu, por exemplo, gostaria de pagar R$ 20, R$ 30 ou R$ 40 para
não ter meu carro furtado, para não correr o risco de ver meu filho ir para o
tráfico”.
Sob o manto do decreto, milicianos registrados como
advogados, jornalistas, políticos, donos de escola de tiro ou residentes no
meio rural ganhariam o direito de portar armas, adquirir pistolas sofisticadas
no mercado legal e comprar vastas quantidades de munições. A conversa
ideológica inspirada na NRA é só uma importação de bem supérfluo: distração
para pistoleiros desocupados das redes sociais. O decreto presidencial ajuda a
armar as milícias, legaliza o crime organizado e oferece um precioso
“excludente de ilicitude” para os “grupos de policiais” celebrados pelo 01.
Sergio Moro assiste, inerte, ao espetáculo deprimente.
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