As democracias são, a um tempo, frágeis e resilientes.
Implica-se muito com o uso indiscriminado do conceito de resiliência, tomado de
empréstimo da física para tratar da adaptabilidade, maleabilidade dos regimes
políticos. Mas, não vejo melhor forma de caracterizar esta intrigante
construção iluminista, inspirada nas experiências clássicas da Grécia e de
Roma. Ambas conceitualmente ricas, mas concretamente limitadas. Dos
ecossistemas resilientes, diz-se que têm a capacidade de retornar à condição
original de equilíbrio, após suportar alterações ou perturbações ambientais.
Resiliência é a habilidade para resistir, lidar e reagir de modo positivo em
situações adversas.
A democracia tem essa capacidade plástica de amoldar-se,
absorvendo os choques adversos, para reencontrar o equilíbrio, após as
perturbações. É um sistema institucional capaz de das respostas positivas, de
se reorganizar em situações desfavoráveis à sua estabilidade e permanência. Ela
muda, reconstrói-se, reequilibra-se, em alguns casos, pode até entrar em
recesso, mas restaura-se, após os traumas e surtos autoritários.
Democracias vivem sob risco. É possível falar-se em
variações no grau no risco que enfrentam a cada momento histórico. Por sua
própria natureza, esse regime peculiar cria perigos para si mesmo. Explico. As
democracias abrigam seus maiores inimigos, deixando que votem e sejam votados.
Um modelo de governabilidade com tal grau de abertura e tolerância é,
necessariamente, contraditório.
Ele dá aos adversários das liberdades democráticas o direito
de atuarem, nos seus generosos limites institucionais, contra seus próprios
princípios fundamentais. No após Segunda Guerra, têm sido esses inimigos, que
usam as eleições para poder atacar a democracia por dentro, os principais
responsáveis por recessos da democracia. Lideranças autoritárias se elegem e
tentam impor-se ao Parlamento, manipular as maiorias no Judiciário, para
eliminar o princípio da incerteza. Essa manipulação busca assegurar que as
decisões sigam sempre a vontade do governante e, não mais, a fluida composição
das maiorias instáveis. Foi o que se deu na Venezuela, na Hungria, Turquia e na
Polônia. Pode acontecer nos Estados Unidos e no Brasil.
A democracia se nutre da incerteza. Primeiramente, da
incerteza eleitoral. Suas características fundadoras, assentadas nas liberdades
e na representatividade, não resistem ao domínio longevo, previsível de
governantes. Cada ciclo eleitoral, fonte de energia democrática, deve alimentar
a dúvida não só apenas em quem ocupará o posto central do governo, presidente
ou primeiro-ministro, mas também, quem deterá a maioria parlamentar. A
alternância no poder é um antídoto contra as tendências autocráticas embutidas
na possibilidade de perpetuação dos governos. Governos democráticos são, por
natureza, precários, marcados pela provisoriedade inscrita no calendário
eleitoral.
Democracia é um regime avesso às maiorias imutáveis, aos
votos previsíveis.
A imprevisibilidade do resultado das deliberações
parlamentares é o mais importante mecanismo de freio e contrapeso às
autocracias. O encanto e a força da democracia estão na agregação das escolhas
individuais, idiossincráticas, em um produto de deliberação coletiva, numa
alquimia que faz o todo melhor que as partes.
O princípio da incerteza, que está no coração do organismo
democrático, gera um processo de pressões e contrapressões, incentivos e
desincentivos, que tende a resultados negociados, nos quais a maioria que se
forma, para ser viável, deve considerar os interesses das minorias. É um
sistema que busca o equilíbrio possível, dinâmico, sempre precário. Boa parte
da resiliência da democracia está nesse sistema de forças que indica, como
melhor resultado possível, aquele que é mais pluralista, isto é, contempla o
maior número possível de preferências, evitando gerar danos incapacitantes a
qualquer parte.
O máximo de bem, com o mínimo inevitável de mal. Nem é
preciso adicionar que tal sistema ideal depende do exercício generalizado da
tolerância e da simpatia. Sem aceitação do outro e certa compreensão da perspectiva
do outro, não há como esforçar-se para minimizar os sacrifícios dos não
contemplados nas decisões coletivas, com proteção garantida aos mais
vulneráveis socialmente.
O politólogo americano Edward Burmila, escreveu recentemente
na revista The Nation, artigo no qual fala dos perigos que as instituições
democráticas correm no seu país, com a guinada dos Republicanos para a direita
não-democrática. Aquela que não respeita as minorias, nem busca a melhor
agregação possível dos interesses da maioria social. Ele argumenta que o risco
institucional, hoje, só não é maior, porque Trump é um autocrata ineficaz. O
dia em que um autoritário carismático emergir na direita, alertou, já há
evidência suficiente de que as instituições e normas mais estimadas não salvarão
os Estados Unidos. Com Trump, diz Burmila, o Congresso e o Judiciário já
demonstraram que podem se dobrar à vontade até de um presidente impopular e
inepto como ele. Imaginem com um autocrata polido e sedutor, conclui.
A democracia pode mesmo entrar em recesso, diante de
lideranças populistas autoritárias e capazes de dobrar o sistema. Um recesso
que causará dores severas e perdas talvez irreparáveis à sociedade. A
fragilidade das instituições, quando autocratas ludibriam os freios e
contrapesos que as protegem, neutralizando os princípios da liberdade e da
incerteza, é, também, sua força. Exatamente porque a democracia não é sólida,
ela não se desmancha facilmente no ar rarefeito.
A democracia é difícil de quebrar porque ela se amolda. Uma
vez eliminada a força que a deformava, ela recupera sua forma, seu estado
saudável. Com mudanças, novos freios e contrapesos para evitar a recorrência de
um recesso pelo mesmo caminho, mas essencialmente a mesma, a democracia
ressurge. No recesso, o ideal democrático alimenta a resistência, as
insurreições e a rebeldia. É da sua natureza. Pressionada no topo, ela flui,
escorre para a sociedade e dá força à voz potente das ruas.
Regimes de liberdade não comportam solidez. A mentalidade
democrática é uma propriedade exclusiva das mentes abertas. A mente fechada é
que abriga mentalidades autoritárias. Regimes abertos, compatíveis com a
democracia, não discriminam nem seus inimigos. Regimes fechados, próprios ao
autoritarismo, discriminam seus próprios aliados e simpatizantes. Por serem
duras e fechadas, as autocracias sofrem rachaduras estruturais e, no limite,
desmoronam.
* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e
comentarista da CBN.
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