Corte nas universidades reflete dicotomia entre humanas e
exatas
Cultura clássica ou científica? Essa dicotomia imemorial já
estava na raiz das birras de Sócrates com
os sofistas e também contribuiu para a condenação do filósofo a beber cicuta.
Com a revolução industrial, ela ressuscitou no século 19, ganhou fôlego na
Alemanha (com a “Controvérsia do Método” entre Carl Menger e Gustav Schmoller),
ressurgiu nas teorias de Benedetto Croce e T.S.
Eliot, atingindo seu apogeu numa palestra do cientista e romancista
britânico C.P.
Snow, que depois virou livro (As Duas Culturas) e referência
mundial.
Isaac Newton valeu-se da filosofia de Robert Boyle para revolucionar
a ciência. Einstein,
devotado leitor de Sófocles e Cervantes,
adorava mergulhar na filosofia e até criou uma academia de amigos para
estudar David
Hume e seu Tratado da Natureza Humana e a Ética de
Espinosa. O racha entre os dois saberes existe, mas é menos adstrito do que se
pensa e diz.
Faz 60 anos na próxima terça-feira que Snow expôs, na
Universidade de Cambridge, o seu incômodo pela divisão entre as ciências e as
culturas ditas humanas, a seu ver, “um obstáculo à solução dos problemas
mundiais”. Embora condenasse tanto o analfabetismo literário e artístico dos
cientistas quanto a ignorância científica dos intelectuais literários,
propugnando uma espécie de conciliação de sensibilidades, Snow acabou acusado
de bajular o establishment científico, e não apenas por seu contemporâneo F. R.
Leavis. O paleontólogo Stephen Jay Gould considerava o conceito de Snow
(recauchutado em 1963 e aqui traduzido pela Edusp há quatro anos) furado, míope
e daninho.
Daninho por reavivar, segundo Gould, uma polêmica
desnecessária e potencialmente tóxica. Disso tivemos prova dias atrás, quando
nosso atual presidente e seu ministro da Educação soltaram os cães contra as
disciplinas “humanas”.
Reclama-se, injustamente, que o governo Bolsonaro está
parado. Não está parado quem para trás anda. Entre as inúmeras e mais recentes
evidências da regressão – censura à publicidade, reiterado desprezo à cultura,
incentivo ao turismo sexual, à espionagem macarthista em sala de aula e ao
genocídio campesino, indulgência com as milícias paramilitares – a indicarem
que a grande questão brasileira é, hoje, a recuperação de uma civilização
mínima, nenhuma me escandaliza mais que o descalabro da educação, a maior
vítima da preamar obscurantista da semana passada.
A ditadura de 64 investiu militarmente contra as
universidades, invadiu-as, nelas fez prisões, saques a bibliotecas e
laboratórios, e ameaças, como a do coronel Darcy Lázaro, ao ocupar a UnB (“Se
essa história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil, vamos acabar
com a cultura pelos próximos 30 anos”), que, para o bem de todos, não se
cumpriu. Como agora vivemos numa democracia, nada daquilo, por enquanto,
aconteceu. Mas os indícios adversos são preocupantes.
O atual ministro da Educação Abraham Weintraub ainda não
promoveu expurgos em universidades, ao estilo Gama e Silva, fugaz responsável
pela área após o golpe de 64 e algoz de FHC, Florestan Fernandes e outros
professores quando reitor da USP, mas, pelas invectivas que tem feito, vontade
não lhe deve faltar. A exemplo do engenheiro Suplicy de Lacerda, sucessor do
jurista Gama e Silva no ministério, Weintraub, egresso do mundo financeiro, tem
uma visão tecnocrática do ensino. Lacerda montou o famigerado Acordo MEC-Usaid
(agência norte-americana para desenvolvimento internacional) visando
privilegiar a criação de cursos técnicos e profissionalizantes em detrimento
dos cursos de humanidades (ciências humanas, filosofia, línguas etc) mais
voltados para a formação crítica do cidadão.
O pretexto, hoje, como ontem, é “focar em áreas que gerem
retorno imediato ao contribuinte”. Até parece que o mercado de Uber não está
cheio de engenheiros, arquitetos e cientistas desempregados. Essa balela
utilitarista nem mais disfarça suas reais intenções: anestesiar a estudantada e
sufocar o espírito contestatório de alunos e professores, que o ministro e seu
chefe consideram perigosos agentes do “marxismo cultural”, este idoso
espantalho ideológico cujo antissemitismo de origem deveria ser motivo de
repulsa por alguém minimamente decente e bem informado.
O cordão sanitário não funcionou meio século atrás e deverá
ser outro fracasso agora.
Para justificar os anunciados cortes nos recursos nas
universidades, o ministro invocou a realização, nas dependências das três, de
eventos políticos, por ele reduzidos à categoria de “balbúrdias”. Ou seja, foi
uma punição, que não teria ocorrido se, em vez de uma manifestação de repúdio
ao fascismo, como uma delas foi, em 2018, tivesse sido uma balbúrdia qualquer
contra a, digamos, internação num manicômio do filósofo da Virginia, que, por
sinal, até o momento não deu um pio sobre o raide contra as “humanas”.
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