A chave para uma saída negociada para a crise venezuelana é
uma retirada em ordem dos militares do poder, restabelecendo as regras do jogo
democrático e mantendo a unidade e disciplina das Forças Armadas da Venezuela.
A melhor e mais bem-sucedida experiência de uma operação dessa natureza foi a
longa transição brasileira, na qual os militares voltaram para os quartéis e
somente recuperaram o poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, depois
de passarem 34 anos fora da política.
Os generais que cercam o presidente da República,
principalmente os três mais poderosos — o vice-presidente Hamilton Mourão; o
chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno; e o
ministro da Defesa, general Fernando Azevedo —, viveram esse processo na
caserna. A “distensão lenta, gradual e segura” do presidente Ernesto Geisel,
iniciada nas eleições de 1974 (logo seguida de prisões em massa de
oposicionistas, após a derrota eleitoral de novembro daquele ano), somente foi
encerrada com eleição de Tancredo Neves, em 1985, no colégio eleitoral, no fim
do governo de João Figueiredo.
Politicamente, foi uma operação bem-sucedida; militarmente,
coincidiu com a maior profissionalização e aperfeiçoamento da formação dos
militares e o reforço da disciplina e do respeito à hierarquia. A mesma geração
de militares que se beneficiou dessa mudança qualitativa no comportamento das
Forças Armadas, viu frustrada as ambições de ascensão social e política por
meio da carreira militar, em razão do desprestígio causado pelas violações dos
direitos humanos e do fracasso do modelo de capitalismo de estado implantado
pelo regime militar.
Nada disso se compara, porém, à experiência dos militares de
outros países quando foram apeados do poder: muitos foram presos, julgados e
condenados por causa da tortura, como na Argentina. Mesmo os militares
chilenos, muito bem-sucedidos na economia com seu modelo neoliberal, foram
atropelados pela vitória do “No” no plebiscito convocado pelo general Augusto
Pinochet. A “anistia recíproca” negociada com o Congresso, com Figueiredo no
poder, em 1979, foi o nó que amarrou a transição. Depois da redemocratização,
mesmo nos governos do PT, o pacto que garantiu o sucesso da transição foi
mantido.
Vejamos os últimos acontecimentos na Venezuela. Mesmo enfraquecido
na sociedade, Nicolas Maduro permanece no poder, graças ao apoio dos militares
venezuelanos. Ontem, o líder da oposição Juan Guaidó, em Caracas, voltou a
pedir o apoio dos militares, 24 horas depois do fracassado “levante” militar
que havia anunciado. Maduro tem o apoio da cúpula das Forças Armadas de seu
país, de Cuba, da Rússia e da China. Os acontecimentos de ontem, quando a
Guarda Nacional Venezuelana reprimiu violentamente os manifestantes, mostram
que a situação é crítica, mas o governo não perdeu o sabre que contém os
protestos.
Ambiguidade
Uma retirada das Forças Armadas da Venezuela do poder será
mais complexa do que se imagina, ao menos por três razões: o falecido
presidente Hugo Chavez, que era militar, doutrinou e promoveu a maioria dos
generais; as empresas estatais venezuelanas são controladas por militares
corruptos; e o ministro da Defesa, Vladimir Padriño, além dos negócios,
controla o tráfico de drogas no país. A cúpula militar venezuelana não aceitará
nenhum acordo que implique punição pelos crimes que cometeu. A lógica do
confronto entre Maduro e Guaidó não permite esse tipo de acordo, seria preciso
que outros atores entrassem em cena, no governo e na oposição, para uma solução
negociada. Esses atores existem, mas ainda não se apresentaram publicamente.
A posição do Brasil nesse processo é ambígua. O presidente
Jair Bolsonaro, influenciado pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto
Araujo, quase embarcou na lógica intervencionista do governo Trump, que já fez
três tentativas de forçar a renúncia de Maduro: quando Guaidó se declarou
presidente interino, por ocasião da fracassada operação de ajuda humanitária e
na tentativa de levante de terça-feira passada. Nas três ocasiões, o chanceler
brasileiro estava mal-informado sobre a real correlação de forças na Venezuela,
em razão de informações recebidas de John Bolton, assessor de Segurança
Nacional, e Mike Pompeo, secretário de Estado, com quem, inclusive, esteve
novamente, na segunda passada.
Apesar das deficiências dos serviços de inteligência do
Brasil, a experiência dos nossos generais e a doutrina de defesa das Forças
Armadas brasileiras impediram que Bolsonaro desse um passo maior do que as
pernas, como fez Guaidó, novamente, na terça-feira. A variável nova na crise
venezuelana é a interferência de militares e serviços de inteligência russos,
por ordem de Vladimir Putin, que tem outro tipo de experiência de transição
política. Na Rússia, os militares e burocratas poderosos se apropriaram das
empresas estatais que comandavam, nas “privatizações selvagens” do governo
Boris Yeltsin, dando origem à atual e bilionária plutocracia russa. Os Estados
Unidos acusam os russos de impedirem a renúncia de Maduro.


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