segunda-feira, 13 de maio de 2019

PANFLETO DOUTRINÁRIO

Na semana em que Eva Perón (1919-1952) completaria cem anos, é publicado na Argentina um livro revelador, “Evita y Yo” (Evita e eu, ed. Emecé), de Manuel Penella.
O autor é filho do jornalista, escritor e diplomata espanhol Manuel Penella de Silva (1910-1969), que foi o “ghost writer” da primeira versão de “A Razão da Minha Vida”, livro atribuído à mulher de Juan Domingo Perón (1895-1974).
Penella vem a público agora para contar algo que os argentinos não sabiam: a versão original, que tinha sido escrita por seu pai a partir dos depoimentos de Evita, de Perón e da observação minuciosa feita sobre o entorno do casal, foi alterada em quase todo o seu conteúdo.
Foram tiradas partes consideradas demasiadamente reveladoras da intimidade e do pensamento da então primeira-dama e dos bastidores do poder durante o governo peronista. Em seu lugar, foram inseridos vários elogios ao presidente e general Perón.
O livro que hoje conhecemos saiu em 1951, apenas um ano antes da morte de Evita em decorrência de um câncer –a essa altura, ela já estava doente. Penella diz crer que nem a própria Evita conheceu a versão final do livro que assina. Avidamente lido pelas mulheres peronistas, a obra foi adotada nas escolas argentinas por muitos anos.
Transformado em um panfleto doutrinário, o livro foi renegado por Penella de Silva, que não recebeu pelo trabalho e teve de passar apertos para sustentar a família até conseguir deixar a Argentina.
Até então, ele havia tido uma carreira cheia de êxitos, como correspondente na América Central, na Suíça e na Alemanha durante a Segunda Guerra. Também era autor de livros sobre a atualidade do período.
Conta o filho que o pai se sentiu atraído pela figura de Eva Perón em 1947, porque vinha se interessando pelo papel da mulher na política internacional. Por conta disso, fez as malas, rumou para o sul e aproximou-se do casal Perón, ganhando sua confiança a ponto de ser designado para a tarefa de escrever o livro.
“Meu pai tinha uma sensação positiva em relação à Argentina daquela época, e essa sensação se manteve até 1951. Parecia um lugar moderno, onde uma nova proposta política vinha surgindo”, conta Penella filho à Folha. “Com a descoberta do diagnóstico da doença de Evita e o resultado da publicação do livro imperdoavelmente alterado, ele entrou numa verdadeira depressão.”
Uma das razões pelas quais Penella de Silva ficou tão alterado é porque ele não gostava nada do general Perón. Também afirmava que Evita era o verdadeiro motor do que considerava ser uma “revolução”.
Com as mudanças feitas por pessoas próximas a Perón, o ex-presidente argentino ficou parecido com uma figura santa. O livro se transformou em um convite para adorá-lo. Já Eva surgia quase que apenas como uma pessoa que sustentava o mito. Na versão original do livro, cujos trechos são publicados em “Evita y Yo”, percebe-se um trabalho mais rebuscado para retratar a personagem e seu tempo, também mais jornalístico, crítico e menos laudatório.
“Para meu pai, a autêntica revolucionária era Eva Perón, e não seu marido. Por isso se dedicou tanto a esse trabalho. Ele tinha grande admiração por ela”, conta o filho.
Para ele, se a versão original tivesse vindo a público, a imagem de Evita hoje seria outra. Além de perder o aspecto doutrinador, a obra faria com que Evita “tivesse um lugar muito mais destacado na história do feminismo contemporâneo, e não teria sido embrulhada por uma ideologia ultraconservadora pela qual é conhecida hoje e que não fazia parte de sua personalidade”.
O escritor também crê que as alterações tiveram como objetivo deixar apenas o que o texto tinha de apreciação de que a Argentina era o “país do futuro” naquela época.
Foi retirada a preocupação de Penella de Silva, e de Evita, com a miséria. “Havia tanta miséria naquela época como há agora, e ela estava legitimamente preocupada com isso. Se tivesse permanecido a versão de meu pai, o legado do livro seria continuar chamando a atenção para sua personalidade humanista e justiceira”.
Da Folhapress
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