“O inimigo avança.” Na tradução de Millôr Fernandes, essa é
a frase final de Antígona, a tragédia que Sófocles escreveu há 25 séculos para
nos alertar, em vão, sobre os riscos da tirania. A toda hora o rei Creonte usa
a ameaça do exército rival para justificar seus abusos contra sua própria
gente. É um usurpador. Chantageia os habitantes de Tebas dizendo que se ele,
Creonte, não estiver no trono, a cidade cairá nas mãos dos tenebrosos invasores
estrangeiros. Se os tebanos não o seguirem e não lhe obedecerem, farão o jogo
das tropas que, do lado de fora dos muros da cidade, esperam a melhor
oportunidade para destruí-la. Com esse tipo de paranoia conspiratória, domina
seu povo pelo medo, até que, ao final, tudo desmorona – enquanto “o inimigo
avança”.
Antígona nos ensina que a personagem essencial de toda
tirania não é o tirano propriamente, mas o inimigo, o tal que “avança”. É bem
verdade que, no caso de Tebas, esse inimigo era real e iminente, embora não fosse
tão apavorante como Creonte o descrevia. Em tiranias mais presentes, o inimigo
não tem existência factual; é apenas uma construção retórica para emprestar uma
legitimidade fraudulenta ao regime arbitrário. No nazismo, os judeus foram
postos nesse lugar de inimigo retórico; no stalinismo, o mesmo papel coube aos
trotskistas. A propaganda oficial transformava pessoas indefesas – judeus e
trotskistas – em oponentes de poderes incomensuráveis, capazes das atrocidades
mais indizíveis. A partir daí, a perfídia do totalitarismo consistiu em dizimar
seres humanos frágeis como se fossem a encarnação das piores entidades do
inferno. Hitler e Stalin aterrorizavam a população e ainda posavam de vítimas,
de mártires abnegados dispostos a se sacrificar e morrer pela pátria. Os dois
sabiam que jamais se estabeleceriam se não tivessem inimigos retóricos para
justificar a si próprios. Sabiam que precisavam inventar a personagem central
de toda tirania: o inimigo.
A lição de Sófocles deveria ser relembrada todos os dias. Se
você quiser se indagar com o risco de tiranias, não se preocupe em identificar
o aspirante ao cargo de tirano. Antes comece procurando pelo inimigo retórico
que uns e outros estão construindo com seus discursos histéricos. Por esse
critério (infalível), você verá que no mundo de hoje não faltam caudilhos mais
ou menos consolidados que, com suas cruzadas contra opositores mais ou menos
fictícios, acarretam tragédias maiores ou menores. Quanto ao Brasil, ao menos
por enquanto, não temos um tirano instalado, temos um arremedo de algo desse
naipe: um presidente que não desiste de ser candidato a ditador. E então? O que
representa essa figura? Para onde aponta o destino do nosso país?
O que sabemos até agora é que para alcançar seu objetivo o
candidato a ditador tenta a toda hora bestializar a figura daqueles que elegeu
como seus inimigos retóricos preferenciais: os políticos, os professores, os
gays, os artistas, os jornalistas e um ou outro ministro do Supremo Tribunal
Federal. Ele sabe que precisa de um bloco de inimigos. Presentemente, deu de
reclamar que lhe faltam instrumentos de mando. Queixa-se da ingovernabilidade
nacional. Pleiteia, sem dizer que pleiteia, poderes para combater essa gente
inútil: os políticos, que, segundo ele, só praticam a corrupção; os
professores, que fazem lavagem cerebral na cabeça da juventude para
desencaminhá-la com doutrinas comunistas; os gays, que conspurcam as bases da
família tradicional; os artistas, que – onde já se viu? – querem liberdade; os
jornalistas, que apuram os fatos; e, por fim, certos magistrados que ficam aí
resistindo e se recusam a mandar prender todos os anteriores de uma vez por
todas.
Olhando as coisas por esse ângulo, o risco da tirania ronda
também esta terra em que se plantando tudo dá. O presidente candidato a ditador
ostenta traços de bonapartismo explícito: nele transparecem o desejo incontido
de atropelar os outros Poderes e a obsessão de forjar um laço direto com as
massas, passando por cima das mediações institucionais (basta ver as
manifestações de rua que ele mandou convocar para o próximo domingo, cuja pauta
beira a inconstitucionalidade). O sujeito também carrega traços fascistas: sua
pregação desmesuradamente fálica acerca de pistolas e virilidades, além de
obscena, é mussoliniana, assim como são mussolinianos os elogios que se tecem
no seu entorno a agrupamentos armados fora do comando do Estado. Diante de tais
evidências, só se pode concluir que a democracia está sitiada e a tragédia se
avizinha.
Acontece que há também um forte componente paródico no
personagem em pauta. Com o devido respeito, a estampa de Jair Bolsonaro tem um
quê de burlesco. Falta-lhe o carisma, que requer dons pessoais extraordinários.
No fundo – cada vez mais gente pressente –, ele está mais para Oscarito ou
Mazzaropi do que para Creonte ou Mussolini. Seus apoiadores começam a debandar,
menos por divergência ideológica e mais por se envergonharem das doses
incomensuráveis de pastiche-pastelão. Muitos de seus eleitores já se furtam a
comparecer às passeatas de domingo, não porque tenham desistido das convicções
autoritárias, mas porque ainda lhes resta um pingo de senso de ridículo.
Visto por aí, o cenário não é de tragédia, mas de chanchada
da Atlântida. Por esse ângulo, o problema de Bolsonaro não é seu liberalismo
fajuto, não são os modos ferozes, não é a bancarrota da economia, não é o
despreparo pedestre ou a incapacidade para depreender o significado da palavra
nova-iorquino. O seu problema é mais embaixo – e mais baixo. Ele parece estar à
frente de um mandato que, por não ter tido condições de se fazer levar a sério,
talvez não logre se levar a cabo. Se for isso mesmo, a Nação terá perdido tempo
e saúde não com um populista de direita, mas com uma piada asquerosa,
regurgitada, sobre a qual o inimigo (real ou retórico) não avança porque se
dobra de rir.
Ou será mesmo tragédia?
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP.
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