Em janeiro, o presidente Bolsonaro assinou decreto que
facilitou a posse de armas. A posse permite manter arma em casa ou outra
propriedade, como um comércio. Mais recentemente, em 7 de maio, editou um
segundo decreto, dessa vez liberando o porte, até mesmo de fuzis. Note-se que o
significado da permissão do porte de armas vai bem além da posse, ao dar
direito de andar armado ao cidadão que obtiver licença. Ontem, novo decreto
abrandou a versão anterior.
Essas decisões são coerentes com a campanha eleitoral do presidente.
De fato, a liberalização da posse e do porte de armas de fogo foi uma de suas
mais marcantes promessas de campanha. A coerência, entretanto, não é
necessariamente virtuosa quando insiste no erro. O aumento da criminalidade no
Brasil não será resolvido expandindo o porte de armas, mas, principalmente,
tornando mais provável a punição dos criminosos.
Um debate longuíssimo – e ainda inconclusivo – sobre o tema
tem se desenvolvido nos Estados Unidos há mais de 20 anos. Quais serão os
efeitos sobre a criminalidade da disseminação do porte de armas?
Em 1997, os pesquisadores John Lott e David Mustard
publicaram importante artigo em que procuraram mostrar que o porte não
ostensivo de arma (quando o cidadão pode andar armado, mas com a arma
escondida) reduzia a criminalidade. A explicação era a de que a difusão do
porte intimidaria os criminosos, pois eles saberiam que a vítima poderia
antecipar-se ou revidar. O artigo foi, possivelmente, o trabalho mais influente
em termos de políticas de segurança pública nos EUA. Hoje, 16 Estados liberam o
porte não ostensivo sem nenhuma restrição; 26, por meio de licença automática
(se preenchidos os critérios legais); e 8, mediante licença condicional. Nenhum
dos 7 Estados que vedavam o porte em 1997 mantêm a proibição.
O maior antagonista de Lott e Mustard tem sido o pesquisador
Richard Donohue, que publicou várias contestações ao trabalho da dupla. Em
artigo recente, Donohue e outros procuraram demonstrar que a liberação do porte
leva ao aumento de até 13% dos crimes violentos dez anos depois de adotada. Já
os críticos de Donohue, como o pesquisador Gary Kleck, consideram que seus
argumentos são frágeis, na medida em que ele não explica por que o aumento da
criminalidade seria provocado pela liberação do porte. A criminalidade dos
portadores não ostensivos seria praticamente nula e, portanto, não poderia
explicar aumento da criminalidade geral.
E no Brasil? Qual será o impacto da permissão para o porte
de armas? Argumenta-se que a medida poderá ser inócua ou mesmo contraproducente.
A razão principal para isso seria o efeito surpresa, que quase sempre dá
vantagem ao criminoso. Ainda que esteja armado e tenha habilidade, um cidadão
comum tem pouca chance de neutralizar um assaltante. E isso vale também para
policiais – altamente preparados para manusear armas –, que pouco podem fazer
diante de um ataque de surpresa, como demonstra o elevado número de agentes
assassinados.
Mas se armar a população não seria a saída para a nossa
grave crise de segurança, que soluções outras poderiam ser propostas? Em
primeiro lugar, é preciso reduzir a sensação de impunidade. A melhor
criminologia contemporânea, muito influenciada pelo trabalho do economista Gary
Becker, aponta que a certeza da punição, mais do que a severidade da pena, é o que
efetivamente detém o criminoso.
Veja-se o caso de São Paulo: desde 1999 a taxa de
encarceramento triplicou, enquanto a taxa de homicídios dolosos foi reduzida a
menos de um terço do que era, caindo de 35 por 100 mil para aproximadamente 10
por 100 mil. O caso paulista demonstra que o aumento da taxa de encarceramento
inequivocamente reduz a criminalidade. Além do efeito dissuasório sobre outros
criminosos, o encarceramento incapacita o criminoso de cometer novos ataques.
No Brasil, temos várias causas para a impunidade, sendo duas
as principais. Por um lado, nossas leis de execução penal, em muitas situações,
anulam na prática as sentenças – como a progressão de regime a partir do
cumprimento de um sexto da pena. Por outro, nossos sistemas de investigação,
com poucas exceções, são ineficientes e defasados. Estudo da Agência Lupa
mostra que apenas 6,5% dos homicídios dolosos cometidos em 2016 foram
elucidados. Essa insuficiência investigativa leva à impunidade.
Outro elemento indispensável à diminuição da impunidade
exigiria estabelecer um novo tratamento – mais duro – para os crimes violentos
cometidos por adolescentes, aliás, objetivo de projeto de lei de minha autoria
que tramita agora na Câmara.
É também preciso combater o poder do crime organizado sobre o
sistema carcerário, que propicia o recrutamento, ainda que involuntário, de
milhares de ex-presidiários e seus familiares para a engrenagem do crime. Para
isso é necessário expandir a rede penitenciária federal e seus recursos humanos
e logísticos.
Por último, não podemos esquecer que o tráfico de drogas é
uma porta de entrada para o crime. Alguns acreditam que a liberação do uso de
alucinógenos, como fez o Uruguai com a maconha, seria a solução para
desvincular os usuários dessas redes criminosas. Segundo esse raciocínio, a
criminalidade se reduziria por falta de demanda. Parece uma ilusão. A liberação
de um tipo de droga não acaba com o tráfico, no máximo o desloca para outros
tipos ainda proibidos. Aliás, a criminalidade no Uruguai, uma rara ilha de paz
urbana na América Latina, tem tido crescimento mesmo depois da liberação da
maconha.
Independentemente da solidez jurídica dos vários decretos já
baixados, continuariam as dúvidas sobre a eficácia do porte e se manteria a
preocupação com o aumento do estoque de armas a que ele fatalmente induziria. O
crime no Brasil tem múltiplas causas, todas difíceis de abordar. As soluções
são igualmente complexas e requerem muito mais do que o estampido de embates
políticos.
* José Serra é senador (PSDB-SP)
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