quarta-feira, 22 de maio de 2019

VOTOU, AGORA AGUENTA

Eduardo Salgado, ÉPOCA
O presidente não perde a chance de esculhambar a imprensa. Seus apoiadores atacam o Judiciário. O alvo são as instituições democráticas. Pelas redes sociais, ele espalha fake news e trata seus adversários como se fossem inimigos, não adversários. Sua família tem um papel nas decisões da Presidência como não se via há décadas. A relação com o Congresso é conflituosa, para dizer o mínimo. A cada semana, o presidente dá a impressão que continua no palanque, longe do comando do país. A cada dia, parece, para uma parcela maior da população, uma pessoa claramente despreparada para governar. Essa é uma descrição de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, no poder há dois anos e quatro meses. Lá, só recentemente a imprensa e a oposição começaram a falar abertamente e a toda hora sobre a possibilidade e a conveniência política de iniciar um processo de impeachment. Aqui, Jair Bolsonaro, que faz por merecer uma descrição semelhante a de seu ídolo americano, não tem nem seis meses na Presidência e já convive com pedidos de impedimento. Vale lembrar que Bolsonaro, ao contrário de Trump, não demitiu o diretor-geral da Polícia Federal, não foi investigado por cooperar com a Rússia durante a campanha eleitoral, nem pediu para funcionários do Planalto mentirem nem descumprirem pedidos de investigadores da Justiça. Mesmo assim, o sentimento a favor da remoção de Bolsonaro ganha tração em partes dos formadores de opinião.  
A velocidade com que o impeachment de Bolsonaro ganhou espaço entre analistas políticos mostra o quanto a nossa democracia tem uma pegada bastante anormal. Desde o processo de redemocratização, há 30 anos, dois presidentes foram afastados com processos de impedimento — Fernando Collor, em dezembro de 1992, mesmo tendo renunciado antes, e Dilma Rousseff, em agosto de 2016. A média é de dois a cada sete eleições — uma total e descabida aberração na comparação internacional. Nos Estados Unidos, nenhum presidente foi afastado pelo Congresso. Dois enfrentaram o processo. Andrew Johnson, que era vice de Abraham Lincoln e assumiu a Presidência depois de seu assassinato, em 1865, e, mais recentemente, Bill Clinton. Os dois viram a cassação ser aprovada na Câmara, mas foram salvos pelo Senado. Dos 45 presidentes americanos, o único que poderia entrar na estatística do impeachment é Richard Nixon. Ele renunciou em 1974 quando sentiu que perderia a votação no Congresso. Entre o início do primeiro governo americano, o de George Washington, e a saída de Nixon passaram-se 185 anos. No Brasil, entre a primeira eleição presidencial após o fim da ditadura militar e o impeachment de Collor não precisamos de nada além de três anos. Para afastar o segundo presidente esperamos somente outros 24 anos.
Alguns parecem defender uma espécie de “democracia morena”. Nós importamos um conceito americano — o da eleição de um presidente pelo voto popular —, mas, como temos nossas características próprias, gostamos de despejar os inquilinos do Palácio do Alvorada antes do fim do ciclo eleitoral. As regras do impeachment são mais ou menos as mesmas em vários países. Trata-se de um julgamento político. Não é necessário ter provas de um crime. Basta ter dois terços dos votos do Congresso. Mundo afora, esse recurso é aplicado com extremo comedimento. É aquela regra que existe para não ser acionada — uma espécie de arma atômica. Aqui, a usamos ou consideramos usá-la um mandato sim e o outro também. Só que há vários problemas com essa invenção brasileira. Parece que adotamos um sistema presidencialista para eleger o líder máximo do país e um parlamentarista para justificar sua saída após a perda de apoio da opinião pública e da classe política. Legalmente, não há o que dizer. O impeachment está previsto na Constituição e, avaliado pelo Supremo Tribunal Federal, não é classificado como golpe. 
Mas já deveria ter ficado claro que esse troca-troca verde-e-amarelo não funciona. Se desse certo o que parece ser a nossa tentativa de contribuição à ciência política, tudo teria sido resolvido depois da queda de Collor — ou de Dilma. O que essa nossa democracia "tropicalizada" acaba por fazer é tirar o poder dos eleitores. Votamos para presidente, mas é meio de mentirinha. Para quem fala hoje em impeachment, os quase 58 milhões de votos em Bolsonaro há apenas sete meses não valeram nada. Quem defendeu a saída prematura de Dilma jogou no lixo os 54 milhões de votos que ela tinha recebido em 2014. A ironia é que os defensores de impeachments em série falam como se fossem os maiores defensores da democracia. Não são. Falta eles aprenderem que esse recurso não deve ser aplicado para retirar presidentes incompetentes nem para evitar crises econômicas. A depuração tem que ser feita nas urnas. 
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