O presidente não perde a chance de esculhambar a imprensa.
Seus apoiadores atacam o Judiciário. O alvo são as instituições democráticas.
Pelas redes sociais, ele espalha fake news e trata seus adversários
como se fossem inimigos, não adversários. Sua família tem um papel nas decisões
da Presidência como não se via há décadas. A relação com o Congresso é
conflituosa, para dizer o mínimo. A cada semana, o presidente dá a
impressão que continua no palanque, longe do comando do país. A cada dia,
parece, para uma parcela maior da população, uma pessoa claramente despreparada
para governar. Essa é uma descrição de Donald Trump, presidente dos Estados
Unidos, no poder há dois anos e quatro meses. Lá, só recentemente a imprensa e
a oposição começaram a falar abertamente e a toda hora sobre a possibilidade e
a conveniência política de iniciar um processo de impeachment. Aqui, Jair
Bolsonaro, que faz por merecer uma descrição semelhante a de seu ídolo
americano, não tem nem seis meses na Presidência e já convive com pedidos de
impedimento. Vale lembrar que Bolsonaro, ao contrário de Trump, não demitiu o
diretor-geral da Polícia Federal, não foi investigado por cooperar com a Rússia
durante a campanha eleitoral, nem pediu para funcionários do Planalto mentirem
nem descumprirem pedidos de investigadores da Justiça. Mesmo assim, o
sentimento a favor da remoção de Bolsonaro ganha tração em partes dos
formadores de opinião.
A velocidade com que o impeachment de Bolsonaro ganhou
espaço entre analistas políticos mostra o quanto a nossa democracia tem
uma pegada bastante anormal. Desde o processo de redemocratização, há 30 anos,
dois presidentes foram afastados com processos de impedimento — Fernando
Collor, em dezembro de 1992, mesmo tendo renunciado antes, e Dilma Rousseff, em
agosto de 2016. A média é de dois a cada sete eleições — uma total e descabida
aberração na comparação internacional. Nos Estados Unidos, nenhum presidente
foi afastado pelo Congresso. Dois enfrentaram o processo. Andrew Johnson, que
era vice de Abraham Lincoln e assumiu a Presidência depois de seu assassinato,
em 1865, e, mais recentemente, Bill Clinton. Os dois viram a cassação ser
aprovada na Câmara, mas foram salvos pelo Senado. Dos 45 presidentes
americanos, o único que poderia entrar na estatística do impeachment é Richard
Nixon. Ele renunciou em 1974 quando sentiu que perderia a votação no Congresso.
Entre o início do primeiro governo americano, o de George Washington, e a saída
de Nixon passaram-se 185 anos. No Brasil, entre a primeira eleição presidencial
após o fim da ditadura militar e o impeachment de Collor não precisamos de nada
além de três anos. Para afastar o segundo presidente esperamos somente outros
24 anos.
Alguns parecem defender uma espécie de “democracia morena”.
Nós importamos um conceito americano — o da eleição de um presidente pelo voto
popular —, mas, como temos nossas características próprias, gostamos de
despejar os inquilinos do Palácio do Alvorada antes do fim do ciclo eleitoral.
As regras do impeachment são mais ou menos as mesmas em vários países. Trata-se
de um julgamento político. Não é necessário ter provas de um crime. Basta ter
dois terços dos votos do Congresso. Mundo afora, esse recurso é aplicado com
extremo comedimento. É aquela regra que existe para não ser acionada — uma
espécie de arma atômica. Aqui, a usamos ou consideramos usá-la um
mandato sim e o outro também. Só que há vários problemas com essa invenção
brasileira. Parece que adotamos um sistema presidencialista para eleger o líder
máximo do país e um parlamentarista para justificar sua saída após a perda de
apoio da opinião pública e da classe política. Legalmente, não há o que dizer.
O impeachment está previsto na Constituição e, avaliado pelo Supremo Tribunal
Federal, não é classificado como golpe.
Mas já deveria ter ficado claro que esse troca-troca
verde-e-amarelo não funciona. Se desse certo o que parece ser a nossa tentativa
de contribuição à ciência política, tudo teria sido resolvido depois da queda
de Collor — ou de Dilma. O que essa nossa democracia "tropicalizada"
acaba por fazer é tirar o poder dos eleitores. Votamos para presidente, mas é
meio de mentirinha. Para quem fala hoje em impeachment, os quase 58 milhões de
votos em Bolsonaro há apenas sete meses não valeram nada. Quem defendeu a saída
prematura de Dilma jogou no lixo os 54 milhões de votos que ela tinha recebido
em 2014. A ironia é que os defensores de impeachments em série falam como se
fossem os maiores defensores da democracia. Não são. Falta eles aprenderem que
esse recurso não deve ser aplicado para retirar presidentes incompetentes nem
para evitar crises econômicas. A depuração tem que ser feita nas urnas.
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