Quando a direita populista começou a ganhar eleições na
Europa e, depois, nos Estados Unidos, formou-se consenso generalizado de que
era uma tendência global. O desencanto com democracia representativa, que fora
dominada por social-democratas, socialistas e coalizões progressistas, abria
espaço para longo período de hegemonia da direita. Os precursores pareciam ser
a Alemanha, o Reino Unido e a Espanha, onde a direita conquistara o poder bem
antes.
O avanço do populismo em várias democracias do mundo está
associado à falta de respostas estruturais, que funcionem, para os problemas
criados por uma transição global radicalmente transformadora. Além disso,
crises fiscais resultantes dos estreitos limites impostos pelo capital
financeiro global, pivô do novo padrão de financiamento de governos e empresas,
levaram à imposição de programas de austeridade que solaparam a legitimidade
dos governos de esquerda e centro-esquerda. Apenas Portugal, com sua
geringonça, uma coalizão de esquerda, resistiu à austeridade-modelo e reajustou
as finanças sem sacrificar o legado progressista da era social-democrática. O
êxito dessa divergência será testado nas próximas eleições de outubro.
A transição gera instabilidade macroeconômica e social e põe
em cheque modelos de negócios e a eficácia representativa das democracias, em
sociedades fluidas, que mudam rapidamente, impulsionadas por forças sociais
emergentes e pressionadas por forças sociais em declínio. Este entrechoque
entre forças desiguais inquieta e desestabiliza. As emergentes não tinham, e
talvez ainda não tenham, recursos de poder, influência e mobilização
suficientes para confrontar aquelas em declínio, acostumadas ao exercício do
poder, portanto mais experientes no manejo da política.
O que parecia uma tendência avassaladora e durável, está
dando sinais de ser uma onda, que parece começar a refluir. O primeiro sinal
foi a vitória da centro-direita sobre a direita ultranacionalista na França.
Seguiram-se as derrotas do PP na Espanha, culminando na vitória e no governo
liderado pelo PSOE. O crescimento dos Verdes e o resultado aquém do esperado
dos ultranacionalistas, nas recentes eleições para o parlamento europeu,
mostraram mudança na direção do vento, a soprar só para a direita. Nessas
eleições, o partido mais extremista da direita alemã, o AfD perdeu posições. A
dupla derrota de Recep Tayyip Erdoğan na eleição para a prefeitura de Istambul,
na Turquia, soma-se a essas pistas de refluxo. Que estão presentes, também, na
retomada social-democrática nas democracias nórdicas, Islândia, Finlândia,
Suécia e Dinamarca.
Isto não significa, todavia, que estejamos diante de uma
renascença social-democrática ou socialista no mundo. O que todas essas
eleições, sobretudo para o parlamento europeu, indicam é a fragmentação
política. Uma fragmentação que já pôs em cheque o bipartidarismo do modelo
original de Westminster, de voto majoritário-distrital, no Reino Unido, desde a
coalizão dos Conservadores de David Cameron, com os social-liberais de Nick
Clegg. Ela está evidente nos 24 candidatos concorrendo às primárias do Partido
Democrata nos Estados Unidos, a cobrir um espectro político que vai da
centro-esquerda à esquerda socialista. Tenho tratado dessa tendência à
fragmentação e ao realinhamento partidário no Brasil. As eleições de 2018 contiveram
os dois movimentos, a onda populista de direita, que elegeu Bolsonaro no
segundo turno, e a fragmentação, que produziu o congresso mais fragmentado
partidariamente de nossa história e do mundo.
O mais provável é que a tendência seja à fragmentação política,
que levaria a um realinhamento partidário futuro, com provável emergência de
novos partidos, mais alinhados ao “espírito do tempo” e progressivamente mais
representativo das forças sociais emergentes da transição que se ,mostrem mais
enraizadas estruturalmente. O refluxo da onda de direita seria perfeitamente
compatível a essa tendência à fragmentação e posterior realinhamento
partidário.
E, por que a onda de direita refluiria? Porque essas
lideranças apelam para a raiva, a decepção e o desencanto da maioria com a
persistência dos problemas e a falta de representatividade da velha política.
São, porém, incapazes de oferecer soluções estruturais que mitiguem os efeitos
da transição e a tornem menos inóspita. Ao contrário, medidas
ultranacionalistas, a radicalização nos costumes, a rejeição aos imigrantes, o
racismo, a intolerância religiosa, a homofobia, a aposta na violência policial,
nada resolvem. Apenas aumentam a rejeição a esses governos e à política. Desta
forma, aumentam o desconforto geral. A decepção com o que parecia uma
alternativa, uma novidade, amplifica o desgosto e afasta as pessoas da
política. Pode dar em uma nova forma de alienação coletiva, um distúrbio da
transição, que agrava a falta de opções políticas viáveis, democráticas e eficazes.
Esse quadro de frustração, ao mesmo tempo que retira cidadãos, voluntariamente,
da arena eleitoral, tende a aumentar a fragmentação política e partidária, na
busca aflita por novas opções inovadoras.
Este é um quadro em muito maior sintonia com a grande
transição que tenho analisado, inclusive neste espaço. Transformações radicais,
como que experimentamos globalmente, são, por um tempo imprevisível,
desestabilizadoras. As velhas estruturas ruem, antes que as novas possam
assumir seu lugar. São momentos de incerteza, insegurança e medo. Tudo isso
provoca desalento e indignação, levando a buscas desatinadas, que abrem espaço
para a sedução dos populistas. Estes revelam-se, entretanto, pregadores de
esperanças vãs. Ondas como essa do populismo de direita podem voltar a ocorrer,
do mesmo modo que ondas de populismo de esquerda. Mas, a tendência persistente
é a da fragmentação decorrente dessa busca de novidades políticas. Com o
amadurecimento das formações sociais que emergem da transição estrutural, talvez
se dê um realinhamento das forças políticas, gerando novos sistemas
partidários, profundamente modificados e a consequente renovação da democracia
representativa, que pode se tornar mais participativa e aberta.
* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e
comentarista da CBN.
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