O clã dos Bolsonaro tem ventilado amiúde a sua retórica
autoritária, procurando aos poucos costurar, quem sabe (se colar!), um projeto
de ditadura a ele conveniente. O Zero Dois da linhagem, o internauta
multiplataforma Carlos, com a solidez e perspicácia retórica que lhe são
peculiar, contribuiu dias atrás com mais uma pérola do caudilhismo caboclo.
Disse de maneira cristalina, sem margem a interpretações equivocadas, que “por
vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na
velocidade que almejamos”. Nada mais eloquente como aceno a regimes de exceção
e ao retrocesso do que o enunciado do pimpolho dileto do mandatário. Carluxo,
saltando com a devida destreza o conciliábulo liberal da patota de Guedes,
encontrou (quem sabe) novas e transcendentais mudanças impossíveis de vingar em
um ambiente onde o poder emana do povo.
Interpretando seu personagem favorito, o de paladino de um
western digital, expressou mais uma vez nas redes o que, decerto, também pensa
o patriarca. Messias em pessoa já disse lá atrás: “através do voto você não
muda nada no País; tem de matar uns 30 mil”. Era ainda deputado do baixo clero,
vale a ressalva, mas não reviu o que pensa, como até as pedras do Planalto
sabem. O mano de Carluxo, o Zero Três Eduardo, imerso nos últimos tempos em um
programa de adestramento à candidatura de embaixador em Washington, já salpicou
pistas de como alcançar o intento do controle absoluto do Estado: “para fechar
o STF, basta um soldado e um cabo”, disse, ainda durante a campanha eleitoral
de papai. Lembre: o Mito também falou em “levantar borduna”, em “fuzilar” FHC e
em dar “o golpe no mesmo dia” se chegasse ao poder – como, por ironia do
destino dos brasileiros, acabou acontecendo.
A estirpe bolsonarista, cavalgando ajaezadas metonímias ou
indo direto ao ponto, não mede obstáculos na aplicação do vernáculo belicista.
Nesse tocante, encarna o verbo em pessoa. Seus partícipes se orgulham de
aparecer com armas (o postulante à diplomata Dudu foi o mais recente deles, em
pleno hospital) e de ameaçar e perseguir eventuais críticos. Não se venha dizer
que é preciso relevar, tolerantemente, essa índole totalitária. O pouco caso, a
não reação a condutas do tipo, que afrontam preceitos constitucionais, já levou
muitos governantes em outras ocasiões e em condições semelhantes ao flerte com
o autoritarismo. É previsível entre esses aspirantes a déspotas a postura de
incômodo com os contrapesos da democracia.
Jair Bolsonaro alardeou aos quatro ventos que só deve
respeito e lealdade ao povo, esquecendo-se, talvez propositadamente, que também
deve à Carta Magna e aos demais poderes o mesmo comportamento. Podem-se aduzir
inúmeros motivos para o flagelo ideológico da trupe bolsonarista. Mas talvez o
mais notório deles seja a intolerância que seus membros cultivam por quem pensa
diferente. Tome-se a atitude de Carluxo, por exemplo. Após a saraivada de
reações negativas ao vitupério antidemocrático, ele partiu aos ataques de
sempre, alegando que “canalhas” da imprensa distorceram seus pensamentos. Nem
às próprias palavras ele dá valor. Há pessoas que julgam os seus semelhantes
como se todos indistintamente lhes compartilhassem as visões de mundo e a
consistência de caráter. Com Carluxo, Eduardo, Flávio e o capo Jair parece que
se dá assim.
Nos gabinetes parlamentares da família algumas práticas
desabonadoras foram anotadas. Acusações de laranjal, de uso de cabos eleitorais
fantasmas e de inexplicáveis relações com milicianos levaram o presidente a
perseguir investigadores. A cúpula da Polícia Federal está no cadafalso,
ameaçada de degola. O Coaf, que investigava movimentações financeiras
suspeitas, foi para o espaço. Acabou na concepção original por ousar investir
sobre as contas da Primeira Família. Receita Federal, depois da “devassa” que
promoveu em seu clã, segundo palavras do próprio capitão, deve ser
reestruturada, dividida em sub-repartições. O titular do fisco, Marcos Cintra,
acaba de ser despachado para casa. Também foram mandados embora o presidente do
INPE, por divulgar números de desmatamento oficiais que Bolsonaro não gostou, o
da Ancine, por patrocinar filmes tidos por ele como “pornográficos”, membros do
IBGE, do BNDES e por aí afora.
O xerife do País, que faz questão de dizer que é quem manda
no pedaço, quebra e arrebenta, vai aparelhando o sistema tiranicamente,
enquanto despeja sobre a Nação seu entulho autoritário. Está tudo dominado. Ou
quase. Importante perceber, não sem algum constrangimento, como a República dos
Bolsonaro, que se anunciava nova, capaz de uma distopia radical com tudo que
estava aí, promoveu ao logo dos últimos tempos – nesses primeiros nove meses de
gestação – uma concepção muito peculiar de democracia. Seria, por assim dizer,
uma democracia de sarau, uma ação entre amigos, que se desenvolve no avarandado
dos poderosos. Na particular noção de liberdade que o Messias cultiva cabem as
bravatas ranzinzas, as afrontas a parceiros internacionais, as mentiras em
redes sociais, a difamação de rivais, o que der na telha.
Acata-se o amuo momentâneo dos grãos senhores da indústria e
do comércio, absorvem-se a “malaise” de ministros menos trogloditas como Sergio
Moro e até os protestos abertos do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo
Maia. As desavenças se encerram sob o manto conciliador dos interesses da
minoria, no círculo fechado do privilégio. A velha política, sob o tacape de
Bolsonaro, segue, assim, sendo a mesma. Sai república, entra república, os
desacertos da elite são ensarilhados ao lado do pote que mantém cheio o botim.
Para conservar acesa a camarilha de adoradores, o mandatário
destampou o bolor de pânicos fictícios e alguns fantasmas que a Nação reza para
ver pelas costas, como o da tenebrosa sombra petista. Mas são nas imprecações
sistemáticas que o atual governo deixa a estranha impressão de que se assiste
hoje, afinal, ao que talvez seja a derradeira cena de uma transição dolorosa na
qual prevaleceu a guerra dos extremos. Polarizado até aqui, o País clama pela
moderação. Repudia a prepotência de quem se arvora em digno detentor do poder
absoluto. O governo enfezadinho armou seus homens para uma guerra imaginária e,
nessa toada, sairá derrotado dela.


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