Periodicamente o mundo vive sua cota de ansiedades
alimentada por senhores da desordem. Não há nenhuma audácia ou extravagância em
épocas de inversão permitida, especialmente se as rebeldias não servem para
nada, como o 11 de setembro, salvo piorar a busca pela felicidade e fazer
vítimas inocentes. Se quiser viver sem amargura, deixe a mente aberta ao
otimismo e ampare sua desilusão na força da História.
Na hipótese de nova crise financeira, inexiste hoje no mundo
um grau de pensamento minimamente solidário para resolver um problema a partir
da ação coletiva internacional. Não está no ar algo estruturado, suficiente
para amenizar a queda. O que vemos é o conjunto dos movimentos dos agentes
socioeconômicos mostrar que a desconfiança está nublando o horizonte.
Cada país está se achando senhor das suas ideias e partindo
para experimentações sem levar em conta que o que nos salva é a harmonia da
ação. Sem uma pronta ação multilateral, a atmosfera opressiva imposta ao mundo
pelo estilo Trump ameaça a lógica da acumulação de capital e da circulação de
riquezas em tempo de paz. O multilateralismo estava atrelado à égide de uma
espécie de consenso social-democrata que se vinha formando desde o final dos
anos 1980. Uma social-democracia liberalizante permitia vislumbrar mais
prosperidade e distribuição de renda.
O que anda pelo mundo são puras experimentações de conceitos
e ideias descartadas. Por isso democracia, liberalismo e soberania estão
regredindo a formas geopolíticas arcaicas. E as três piores consequências são o
enfraquecimento do multilateralismo, a volta da bipolaridade política e o
comércio administrado pelo protecionismo.
O principal personagem que nos está levando a este
neoconservadorismo é, paradoxalmente, a disrupção mental e comportamental que a
tecnologia pode causar. Diferente do momento histórico em que surgiram a
imprensa e o telefone, com a internet o bobo da corte virou rei.
As novas tecnologias de informação e comunicação, que estão
evoluindo com rapidez extasiante, são uma maravilha, tanto quanto a imprensa e
o telefone, mas estão desestabilizando as sociedades tocadas por elas com uma
fúria, rapidez e imprevisibilidade sem fim. O que temos hoje é um mundo de
aplicativos pescando incautos para agendas contestatórias e levando governantes
a tirar vaidade das grosserias que propagam.
Há mais de dez anos o dinheiro e o capital político migram
na direção das empresas de tecnologia de informação e comunicação. Mais do que
só a capacidade de financiamento, esses grupos têm vocação para influenciar e
dirigir grupos políticos e movimentos sociais. Basta um paladino de alguma
coisa usar com destemor a internet que ela vira a toca do urso, o mundo dos
hackers e das curtidas insidiosas.
O uso celerado da tecnologia põe em risco a herança cultural
universal. E está na origem do flerte com a forte contestação que sofrem a
democracia, o capitalismo e, como coice de mula, a própria tecnologia. Todos os
dias o cidadão livre é reinscrito em algum mecanismo de busca e levado a um
oculto tribunal de costumes e interesses para ser classificado e julgado por
esse sistema não jurídico de imposição de desejos. Gatos parindo tigres em
todos os campos da atividade humana. A internet é pólvora indemonstrável, que
dispensa a necessidade de indivíduos, das instituições e dos paradigmas da
organização social democrática.
Só isso já causa uma ruptura política e social de vasto
alcance. Pois esses grupos monopolistas cresceram vendo suas tecnologias serem
usadas por manipuladores externos a eles, mediante associações vantajosas. Esse
é o estado da arte. Quem quer poder natural arruma seguidor artificial. Ou
alguém sensato acredita que uma pessoa tenha milhões de seguidores? Nem aqui
nem na China. A comunicação de massa, impulsionada por robôs, cria cardumes
desse tipo meio cretino, meio engraçado que é o crédulo chamado fã.
Assim cresce a percepção de que o poder de tais tecnologias
tem o potencial de gerar lucros e outras formas de mais poder. Chocado em ninho
de pessoas entupidas de apologia, inunda o mundo de tons de ganância e subtons
de caos e facilidades, possibilitando um retorno muito maior de poder e
dinheiro do que qualquer outra atividade econômica.
O contexto geral da simbiose política-tecnologia tende mesmo
a ser preocupante. Já o específico, que faz com que os agentes socioeconômicos
globais tenham dúvidas profundas sobre o mundo que vem por aí, tem que ver com
princípios básicos de crescimento econômico em condições democráticas. Cresce a
percepção de que os adversários dos princípios que orientaram o surgimento do
mundo moderno estão ganhando força e poder.
São variadas as espécies de “malthusianismos” rondando o
planeta. Em comum elas têm a visão de um desequilíbrio catastrófico e do
simplismo das soluções. Seja o malthusianismo ambiental, o malthusianismo do
emprego e do trabalho, o da criminalidade e do terrorismo.
Por malthusianismo entende-se aqui uma preferência por
apontar com passividade, falsa lógica e alarde antissocial situações complexas
e problemáticas. Reúne os que preferem insistir no fatalismo e na
impossibilidade de solução diante do anormal a investir na busca de solução em
que prevaleça o normal. Fazer o futuro é estar disposto a dizer que nenhum
sistema pode fazer-se independente para levar vantagem sobre o sistema
democrático.
Pondo culpa na China, que também apostou na tecnologia, o
governo norte-americano inicia forte campanha de coação sobre suas empresas
para que deixem suas plantas industriais no exterior e concentrem as operações
dentro do país. A percepção é de que a automação e a inteligência artificial
acabarão com o emprego. Sem poderem parar o Vale do Silício, os EUA querem
parar o mundo, até saberem o que fazer com os traumas sociais
desestabilizadores que sua tecnologia acentuou.
*Sociólogo, é copresidente do Conselho de Economia &
política da Fecomercio/SP.


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