Evo Morales caiu — e fugiu. Nicolás Maduro resiste,
contrariando tantos prognósticos. Sebastián Piñera, ainda em palácio, enfrenta
a tempestade. A sorte dos presidentes depende menos da têmpera de cada um e
mais da natureza dos sistemas políticos nacionais.
Na Bolívia, o golpe foi um contragolpe. Seguindo o roteiro
do populismo caudilhista, Morales violou as regras do jogo democrático para se
eternizar no poder. Em busca de um quarto mandato, rasgou a Constituição e, com
o auxílio de uma corte suprema curvada à vontade do caudilho, ignorou o
resultado do plebiscito popular que lhe negara a terceira reeleição. O golpe em
câmera lenta conduzido por Morales concluiu-se com as irregularidades
constatadas no primeiro turno, que provocaram a onda de manifestações oposicionistas.
Um ciclo de protestos populares, a chamada “guerra do gás”,
forçou a queda do presidente Carlos Mesa, em 2005. Morales dirigiu aquele
movimento, que abriu caminho para seu triunfo eleitoral original. Mesa preferiu
renunciar a chamar os militares para reprimir o povo, como fizera o antecessor,
Sánchez de Lozada. Agora, Morales caiu vítima de eventos similares, com a
diferença de que investiu no recurso à repressão. Mas, e aí está a distinção
fundamental, um pronunciamento militar funcionou como gota d’água para a
renúncia. Contragolpe, portanto, o que não deixa de ser um golpe.
Na sua marcha autoritária, Morales dissolveu a independência
do Judiciário e do tribunal eleitoral. Contudo, apesar de ensaios nessa
direção, não chegou a consolidar seu controle sobre as Forças Armadas. O
chavismo venezuelano, pelo contrário, montou um “regime cívico-militar”,
convertendo a cúpula das Forças Armadas em sócia integral do poder ditatorial.
A fidelidade dos chefes militares, testada em circunstâncias extremas, salvou o
governo de Maduro — e lançou o país num transe caótico.
A democracia cumpre, entre outras, a função crucial de
promover transições pacíficas de governo. Nela, em geral, presidentes só têm
seus mandatos abreviados por meio de impeachment, um instrumento legal de
última instância. A queda de Mesa, em 2005, refletiu a fraqueza estrutural da
democracia boliviana. A democracia chilena é mais forte, o que explica a
resiliência de Piñera.
A principal exceção à regra da transição democrática
registra-se nos casos em que, desafiados por manifestações populares, os
governantes desatam uma repressão violenta. Aí, presidentes correm o risco de
cair, como ocorreu com Sánchez de Lozada, em 2003 —ou, antes, na Argentina, com
Fernado de la Rúa, em 2001.
No início, Piñera enveredou por esse caminho, não
distinguindo a massa de manifestantes pacíficos das franjas de grupos
extremistas que se engajam em incontáveis atos de vandalismo. O presidente,
além disso, convocou os militares para conter os protestos, rompendo um tabu
derivado dos traumas da ditadura de Pinochet. Depois, acuado, desculpou-se
perante a nação e iniciou um diálogo político destinado a refazer o contrato
social. Talvez, graças à solidez das instituições democráticas chilenas, escape
do destino que ceifou De la Rúa e Sánchez de Lozada.
Um dia, Maduro cairá — e, provavelmente, seus entusiastas na
esquerda latino-americano descreverão o processo como um golpe. Se Piñera vier
a renunciar, Jair Bolsonaro gritará “golpe!”. Facções opostas do espectro ideológico
disputam a caracterização da renúncia forçada de Morales. Tudo isso é normal no
campo das narrativas políticas. Mas, apesar de tudo, das histórias divergentes
dos três presidentes, extrai-se uma lição de validade universal.
A lição é que o termo “golpe” só se aplica a sistemas
democráticos. O golpe é a interrupção da regra do jogo sucessório. Fora da
democracia, em ditaduras abertas ou em regimes semiautoritários, o jogo
sucessório não obedece a regras claras de aceitação geral. Aí, surgem o “golpe
dentro do golpe”, o “contragolpe”, a “revolução popular”. Morales não tem do
que reclamar. Já os bolivianos merecem a reconstrução da democracia, não um
regime autoritário apoiado no pretexto da retribuição.
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