A ideia de restauração de uma identidade conservadora do
Brasil foi uma fantasia do bolsonarismo desde seu início. Parecia tão caricata
quanto um dia foi a candidatura de
Jair Bolsonaro,
que chegou ao Palácio do Planalto, no entanto. O presidente improvável quer
agora criar o partido da sua revolução reacionária, a Aliança pelo Brasil
(APB). O que pode sair daí?
A APB é um expurgo sectário no governismo e um movimento que
isola ainda mais Bolsonaro no Congresso e na política partidária em
geral. A arenga autoritária da família e de sua seita antiestablishment o
afasta do Supremo, que, de resto, acaba
de soltar Lula e retira paulatinamente o apoio ao lava-jatismo, uma
seiva do bolsonarismo.
Que tipo de ambiente socioeconômico pode favorecer
o movimento reacionário da APB? Trata-se de uma economia que apenas em
2024 deve voltar a ter a renda (PIB) per capita de 2013. Que deve ter uma
taxa de desemprego além de 10% ainda na eleição de 2022. Que até então
terá passado anos sem aumento do salário mínimo ou melhoria notável de serviços
públicos, para nem mencionar o efeito do desmonte legal e estrutural do mundo
do trabalho como o conhecemos.
O bolsonarismo também foi um meio para que certos grupos
sociais pela primeira vez reivindicassem posições centrais de poder, mesmo que
já tivessem participação política relevante. Por exemplo, fundamentalistas
cristãos e o universo social e regional do agronegócio. Servidores públicos
armados e os adeptos de suas ideias de segurança pública. Novas classes médias
altas (em termos estatísticos, quem ganha além de R$ 5.000) e individualistas
obsessivos de teologias e paganismos da prosperidade.
Os
militantes enfáticos desses grupos chegaram ao centro e ao topo com
Bolsonaro, não como aliados menores. Suas falanges radicais serão
representativas de sua base social? Sem melhoras socioeconômicas mais notáveis,
apelando à radicalização e ao isolamento político, exclusivista e sectário, a
APB pode dar organicidade ao bolsonarismo e ainda crescer?
No seu núcleo central e puro, a APB tenta combinar o
fundamentalismo religioso desconfiado ou enojado da ciência, um nacionalismo de
torcida de futebol submisso à internacional reacionária e aquele
conservadorismo de costumes das personagens carolas e taradas de Nelson
Rodrigues.
Esse é um lado da moeda, o da propaganda do bem-pensante
reacionário, digamos, que à primeira necessidade rasga essa fantasia, porém. O
núcleo do movimento é autoritário, dinheirista e familista. Explode em
violência em nome do interesse particular mais mesquinho e viveu pendurado no
Estado.
Os modos “família” logo se dissolvem na cafajestagem
sexista, na conversa recheada de palavrões e expletivos grosseiros,
obcecada com sexo.
São escassamente letrados. São adeptos do “trezoitão” como
mediador de conflitos e da dialética da briga de trânsito ou de torcidas
organizadas. Não têm sentimento ou ideia de nação que não seja a de
contraposição a inimigos internos ou externos, tanto faz se imaginários ou não
(comunistas, globalistas, esquerdistas, feministas, isentões, cientistas etc.).
A APB vai conseguir passar verniz bastante de “Deus, Pátria,
Família” nesse seu cerne bruto? Uma parte significativa do país vai se engajar
nesse projeto de controle autoritário da educação e da cultura, de
desmoralização da ciência, de diplomacia conflituosa, de desbaste de direitos
civis e sociais?
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em
administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
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