Numa semana muita dura e cheia de eventos, pensei em trazer
um tema novo. Já falei de Bolívia e Chile, comentei a saída de Lula e me debrucei,
sem ânimo, sobre a invasão da embaixada da Venezuela em Brasília. Isto me
interessou, pois poderia usar de novo a palavra quiproquó, tão sonora e fora de
moda.
Sinceramente, meu tema de preferência era um chamado projeto
Nightingale, no qual o Google é acusado de vender milhões de dados médicos e
hospitalares das pessoas para grandes empresas do setor. A coleta e venda de
informações é um grande negócio no mundo. Tende a ser o mais interessante, pois
os dados valem dinheiro, sobretudo em grandes quantidades.
Iria refletir um pouco sobre a privacidade num mundo do
Google e das redes sociais quando soube que o presidente do STF, Dias Toffoli,
agora por um artifício legal, tem acesso aos dados financeiros de 600 mil
contas de pessoas e empresas.
Ele proibiu a UIF (antigo Coaf) de partilhar esses dados com
os órgãos de investigação. Um absurdo sem nome. Tenho escrito sobre isso e,
para dizer a verdade, com pouca repercussão. É um ato de exceção. Os próprios
funcionários da OCDE que estiveram no Brasil dizem que a medida de Toffoli está
em contradição com as normas e os compromissos internacionais do Brasil.
Toffoli não se interessa por isso. Seu objetivo era congelar
as investigações sobre Flávio Bolsonaro e impedir que a Receita continuasse
pesquisando os movimentos financeiros de sua mulher e da mulher de Gilmar
Mendes. Ele não se contentou em paralisar investigações. Ele quer acesso a
todos os dados coletados pela inteligência financeira.
É o Big Toffoli navegando pelas contas de todo mundo,
conhecendo os segredos financeiros que ele mesmo impede de serem investigados
adequadamente. Como é possível o país conviver com essa barbaridade? Mesmo os
aliados de Toffoli deveriam temer essa concentração de poder. Nos últimos
tempos, aproximou-se de Bolsonaro para salvar a pele do filho senador. Mas, no
passado, foi um funcionário do PT, um assessor de José Dirceu.
Acho que tanto o PT como Bolsonaro deveriam temer Toffoli. A
quem servirá com esse acesso ilimitado aos dados pessoais e empresariais? Pode
usá-los para fulminar Bolsonaro ou mesmo para enrascar mais ainda seu partido
de coração, que é o PT.
Em muitos lugares do mundo, a Justiça se move na tentativa
de preservar a privacidade das pessoas, acossando o Google e o Facebook, entre
outros. Aqui no Brasil é diferente. É a própria Justiça que invade a
privacidade alheia, na pessoa do presidente do STF. Não se trata mais nos
trópicos de reduzir o poder das gigantescas empresas, mas de ampliar ao extremo
o poder pessoal de Toffoli.
Num mesmo ano, Toffoli salvou Lula e Bolsonaro. Lula porque
foi dele, fiel advogado do PT, o voto de Minerva que acabou com a prisão em
segunda instância. E Bolsonaro, porque foi ele quem tirou as nádegas do jovem
Flávio da seringa do controle de operações financeiras.
Podemos falar tudo de Lula ou Bolsonaro. Mas ninguém apanha
mais do que eles nas redes ou na imprensa. Ambos reclamam, Bolsonaro tira
verbas publicitárias de quem o critica; Lula, volta e meia, se lembra do
controle social da imprensa. Mas nenhum dos dois chegou ao ponto de Toffoli:
instalar uma delegacia, convocar Alexandre de Moraes como seu braço policial e
partir para cima de quem o critica, com polícia revistando casas e
computadores.
Lula precisou de Toffoli. Bolsonaro também. Mas eles
ignoram, talvez, que Toffoli seja muito mais do que um simples auxiliar para
encrencas. Diante da vulnerabilidade dos líderes populistas que polarizam o
Brasil, ele vai construindo seu universo pessoal de poder. E um poder mais
persuasivo que o deles.
Toffoli é o Big Toffoli. Assim com os homens e, além disso,
é o único que tem poder de acessar os dados financeiros de quase todo mundo.
Digo quase todo mundo, porque não me incluo nesses 600 mil. Minha conta
bancária é de uma monotonia tediosa. Mas não me inibo em defender a privacidade
dos outros, ricos ou pobres.
Em 13 anos de oposição, o PT nunca me fez mal. Espero o
mesmo de Bolsonaro. Ambos têm seguidores agressivos. Mas nenhum pode como
Toffoli mandar a Polícia Federal vasculhar meus computadores, incluir-me nos
detratores do Supremo.
A democracia tropical, com a sua incessante troca de
favores, está parindo um monstro. Uso a expressão num contexto institucional.
Pessoalmente, Toffoli até se parece com um desses candidatos por quem suspiram
velhas senhoras em busca de bons moços para votar.
Mas a ampliacão do seu poder pela captura de dados
financeiros o transforma num Big Toffoli.
Artigo publicado no jornal O Globo em 18/11/2019
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