Fato um: a era petista desfraldou no país a bandeira do
apartheid social, cuja cor vermelha, com o lema “nós e eles”, composto por Lula
ainda nos tempos do estádio da Vila Euclides, no ABC paulista, pode ser lido
como “os bons e os maus”, “oprimidos e opressores”, “elite e massas
trabalhadoras”.
Fato dois: o bolsonarismo, mesmo em seu início, luta para
aprofundar a divisão social, batendo na mesma tecla, agora com o sinal
invertido. Em um lado do muro estão “comunistas, esquerdistas, simpatizantes de
Cuba e Venezuela” —e, no outro, radicais de extrema direita, militaristas,
saudosistas dos tempos de chumbo.
Fato três: a polarização a que o país assiste, ao contrário
da tendência de arrefecimento, previsível após a virulência eleitoral, se
acirra a ponto de se ouvir do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente
da República, a pregação de “um novo AI-5” se a esquerda “radicalizar”. Esse
ato institucional, recorde-se, abriu o período mais sombrio da ditadura, com
perseguição e repressão, fechamento do Congresso Nacional, cassação de
mandatos, confisco de bens privados, censura aos meios de comunicação, tortura,
mortes.
Pode a temperatura social tornar-se amena nos próximos
tempos? Não se aposta na hipótese. A índole do capitão governante e os sinais
emitidos pelo seu entorno sinalizam endurecimento de posições. De um lado, se
um posicionamento mais radical dá munição aos dois “exércitos”, expandindo os
tiroteios recíprocos, de outro afastará segmentos até então simpatizantes das
alas conflitantes. Assim, é possível divisar o adensamento dos espaços
centrais. Núcleos que ainda atuam como puxadores do “cabo de guerra” tendem a
arrefecer sua participação.
A maior parcela da nossa população não cultiva a velha luta
de classes, teme os efeitos de acentuada animosidade social, preocupa-se com
questões da micropolítica —escola perto de casa, transporte fácil e barato,
maior segurança, hospitais com serviços de qualidade.
Somos um povo emotivo, que padece grandes carências, mas não
perde a fé. E começamos a alargar a trilha da lógica, como mostrou a última
eleição. Infelizmente, a troca de comando —inspirada pelo espírito de um novo
tempo— tem se mostrado amarrada ao passado, incluindo o que esse tinha de pior,
o culto à ditadura. O fato é que o universo social se divide hoje em três
estratos: um terço dos brasileiros vivendo no chão bolsonarista, um terço
habitando o território da esquerda e um terço ocupando o centro.
Traços de incerteza se espalham para cima, para baixo e para
os lados. Não se sabe o que vai ou pode ocorrer. Pior, não têm aparecido
líderes capazes de galvanizar as forças sociais. Quem emerge como líder de um
projeto para o país? Quem acena com esperança? Bolsonaro, com seu espírito
belicoso, terá longa vida?
Os novos quadros que começam a surgir não inspiram
confiança. Alguns são populares e bem visíveis, como Luciano Huck, o
apresentador da Rede Globo. Que veste o manto do entretenimento, podendo, até,
encarnar a novidade. Seu figurino atrairia as massas. João Doria (PSDB),
governador de São Paulo, é acusado de oportunista. Mas sabe lidar com
comunicação. João Amoedo, do Partido Novo, expressa renovação, mas tem origem
na área dos ganhos financeiros, não muito bem vista. Faltaria lastro para
entrar nas margens. Ciro Gomes (PDT)? Ora, o ex-governador do Ceará é peça
velha no tabuleiro. E Lula ainda tem chance ou patrocinará alguém? O PT com a
lama da Lava Jato pode voltar ao centro do poder?
É triste constatar que nem bem o governo completa um ano e
as conversas já adentram o cenário de 2022. Uma torre de Babel se instala sob
tiroteio expressivo do próprio presidente, que anuncia vontade de continuar no
assento presidencial, antecipando momentos e instalando a balbúrdia. Apesar de
avanços na trilha do civismo, a incultura ainda se faz presente nas margens,
cuja tendência é a de buscar a novidade.
O experimentalismo de outubro de 2018 abriu longa temporada
no país.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e
consultor político
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