Uma coisa é certa: a saída do ex-presidente Lula da prisão
transforma completamente o jogo político e a polarização tende a avançar para o
radicalismo. A disputa entre extremos que se retroalimentam e colocam o Brasil
atualmente em um estado de beligerância permanente vai se intensificar e pode
ameaçar a própria democracia. Haverá agora um embate direto entre duas
lideranças raivosas que não poupam esforços para convencer a população de seus
projetos de poder. De um lado, Jair Bolsonaro e sua política conservadora e
truculenta, que aumenta a desigualdade e ameaça direitos sociais, e de outro,
Lula, ressentido e se julgando injustiçado pelos 580 dias na prisão, voltando à
cena com um discurso de enfrentamento ao governo e cheio de vontade de atacar a
política neoliberal do ministro Paulo Guedes. Há uma escalada radical e é
difícil vislumbrar o que se encontrará no fim do túnel. O certo é que esse
cenário de crispação não levará à solução de nenhum problema brasileiro. Lula
quer detonar as iniciativas de Bolsonaro, pensando nas eleições municipais do
ano que vem e na presidencial de 2022. Bolsonaro avisa que pode usar a Lei de
Segurança Nacional (LSN), que ele quer ativar ao seu bel prazer, para inibir os
movimentos populares e estabelecer, inclusive, um regime de exceção.
Tensão social
Em liberdade, Lula tem um plano de ação e de renascimento
concentrado em sua própria figura demiúrgica. Ainda na cadeia, em Curitiba, ele
anunciou que pretende fazer uma longa caravana pelo Brasil e envolver a
população com seu projeto de oposição. Com bom preparo físico – ele diz que
corre 10 quilômetros por dia – vai percorrer o País para propagar seu papel de
“fio condutor da pacificação nacional”. Seu projeto é circular por vários
estados e se vender como um líder salvacionista, capaz de conter a fúria
destruidora de políticas sociais de Bolsonaro. Seu primeiro discurso em
liberdade, na frente da sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do
Campo, sábado 9, mostrou, porém, a intenção evidente de Lula de aumentar a tensão
social em suas andanças pelo País ao invés de trabalhar pela pacificação. A
tendência é que seu discurso acirre a insatisfação popular e deflagre uma série
de movimentos organizados contra o governo. O plano de Lula só será bem
delineado no próximo dia 22, quando ele fará um “discurso para o Brasil” no
Congresso Nacional do PT, em São Paulo. Ali ficará claro qual será sua
verdadeira atuação oposicionista, se incendiária ou conciliadora.
O tom de sua oratória estará mais ajustado. Outra ideia que
circula é a montagem de um governo paralelo, como o PT fez em 1990, depois da
eleição de Fernando Collor, formado por militantes notáveis de partidos de
esquerda para questionar cada uma das decisões tomadas pelo governo Bolsonaro.
A marcação será cerrada.
Ressentido pelos 580 dias na prisão, Lula volta à cena
com um discurso de enfrentamento e ataca a política de Paulo Guedes
Alta rejeição
Nos dois extremos do campo político, o que se prevê é uma
aglutinação, em torno de seus grandes líderes, de forças que se dispersaram
depois da eleição de 2018 e não conseguem superar seus conflitos. A volta de
Lula ao debate e aos palanques torna o PT mais aguerrido e entusiasmado e abre
a possibilidade de união de grupos e partidos de esquerda. Tudo indica que o
espectro das coligações será menos amplo do que o necessário para uma oposição
consistente e capaz de atrair o eleitor moderado. O PDT de Ciro Gomes, que se
recusa a conversar com o ex-presidente, é uma baixa imediata. Da Rede
Sustentabilidade e de sociais-democratas nem se fala. Embora Lula só pense no
PT, ele se mostra disposto a fazer acordos imediatos com o PSOL e o PC do B na
disputa pelas prefeituras, em especial pela do Rio de Janeiro, onde o deputado
federal Marcelo Freixo (PSOL) será o candidato da esquerda. Chega a falar em
ser um impulsionador da “unidade nacional”, mas isso soa como pura retórica. A
sociedade está rachada e Lula ainda sofre uma grande rejeição. Poderá fazer
barulho, mas é pouco provável que desperte a maioria silenciosa e os “isentões”
para suas causas.
Para Bolsonaro, a reaparição de Lula também pode levar a um
fortalecimento de alianças com outros grupos e partidos de direita que
começavam a ficar sem um eixo de ação. Agora eles têm contra quem pregar.
Bolsonaro vem perdendo aliados, por causa de suas posições extremas, das
interferências indevidas de seus filhos na rotina do governo e da sua aversão
aos ritos da democracia. Seu partido, o PSL rachou e apoiadores, como o
Movimento Brasil Livre (MBL), se afastaram do governo. Agora o presidente
anuncia a criação de um novo partido, o Aliança pelo Brasil, possivelmente com
o mesmo espírito autoritário da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), braço
político da ditadura. Será a sigla da família Bolsonaro e quem quiser que se
una a ela. Trinta e um dos 53 dos deputados do PSL revelaram intenção de se
juntar ao novo partido. Essa iniciativa de criação da Aliança pelo Brasil é
mais uma demonstração de que Bolsonaro está se lixando para o jogo político e
só quer fazer as coisas da sua própria maneira, que costuma ser despótica. Um
dia depois do discurso de Lula em São Bernardo, o movimento Vem pra Rua e o
Partido Novo convocaram seus militantes a se manifestar contra a decisão do STF
de acabar com a prisão em segunda instância, que beneficiou Lula. Para o
Partido Novo, a decisão do STF representa um retrocesso na “luta contra a
impunidade”. Protestos foram realizados em dez capitais do País e levaram
milhares de adversários do líder petista às ruas.
Debate interno
A saída de Lula da cadeia tem sido um assunto de intenso
debate interno no PT. Há uma corrente que prega alguma contenção nas suas
palavras ou mesmo o retorno do “Lulinha paz e amor” numa tentativa de atrair os
setores da classe média desiludidos com o atual governo. Outros pregam a máxima
contundência contra Bolsonaro e suas ideias.
A cúpula do partido considerou o discurso na sede do
Sindicato do Metalúrgicos excessivo em alguns pontos, embora creditando as
palavras mais duras ao fato do ex-presidente estar emocionado após deixar a
cadeia. Avalia-se que ele terá vários julgamentos pela frente e não vale a pena
tumultuá-los ou se indispor com militares, por exemplo. Causou incômodo quando
Lula disse que o presidente nunca trabalhou e que arrumou uma confusão no
Exército para se aposentar cedo. Essa foi uma das provocações questionadas no
partido. Não houve, contudo, qualquer objeção ao trecho do discurso em que Lula
confrontou Bolsonaro e disse que “ele foi eleito para governar para o povo
brasileiro e não para governar para os milicianos do Rio de Janeiro”.
Da fala de Lula na frente do sindicato, o que mais incomodou
o governo foi sua convocação para que a população repita os acontecimentos do
Chile no Brasil, interpretada por Bolsonaro como uma tentativa de subverter a
ordem institucional. Lula, no caminho oposto ao da pacificação, convocou a
militância para reagir ao governo Bolsonaro e declarou que é preciso “atacar” e
não apenas se defender. “É uma questão de honra a gente recuperar esse País. A
gente tem que seguir o exemplo do povo do Chile, do povo da Bolívia. A gente
tem que resistir. Não é resistir. Na verdade, é lutar, é atacar e não apenas se
defender. A gente está muito tranqüilo”, declarou. Para o governo, essas
palavras foram encaradas como subversão e Bolsonaro determinou que alguns de
seus aliados fossem à Justiça contra o ex-presidente. Três pedidos de prisão
preventiva foram feitos à Procuradoria Geral da República (PGR). O primeiro
veio do deputado Major Olimpio (SP), que entrou com uma representação na PGR
com base na LSN, em que alega tentativa de incitação da violência contra a
ordem pública. Os deputados do PSL Ubiratan Sanderson (RS) e Carla Zambelli
(SP) protocolaram outro pedido do tipo, assim como o Movimento Brasil Livre
(MBL), que havia rompido com o governo. Na quarta-feira 13, o procurador-geral,
Augusto Aras, disse que os pedidos de prisão preventiva de Lula foram
encaminhados para o Ministério Público de São Bernardo, onde ele mora. Para os
aliados de Lula, ele só exerceu seu direito à liberdade de expressão.
Mídias sociais
Os primeiros movimentos de Bolsonaro nas mídias sociais
depois da saída de Lula da cadeia foram econômicos. Ele só fez três postagens e
seu filho Carlos, outras duas, se referindo ao ex-presidente sem citar seu
nome. Na sequência, Carlos abandonou temporariamente as redes. Em uma de suas
postagens ofensivas, Bolsonaro disse que começou “há poucos meses a nova fase
de recuperação do Brasil e não é um processo rápido, mas avançamos com fatos”.
E completou: “Não dê munição ao canalha, que momentaneamente
está livre, mas carregado de culpa”. Lula não chamou Bolsonaro de canalha.
Destinou o adjetivo apenas para Moro, a quem culpa diretamente por sua ida à
prisão. “Preciso provar que o juiz Moro não era um juiz. Era um canalha que
estava me julgando”, disse. Em outro tuíte, Bolsonaro convocou seus seguidores
a se organizarem. “Amantes da liberdade e do bem, somos a maioria.
Não podemos cometer erros. Sem um norte e um comando, mesmo
a melhor tropa se torna num bando que atira para todos os lados, inclusive nos
amigos”, declarou. Finalmente disse que não responderá “a criminosos que por
ora estão soltos. Meu partido é o Brasil!”. E completou: “Não vamos dar espaço,
nem contemporizar com presidiários”.
Ao longo da semana, Bolsonaro se dedicou basicamente a
promover sua própria agenda e obras do governo federal, principalmente no
Nordeste, região que se apresenta como um campo prioritário da batalha entre
direita e esquerda. Foi a única região em que o PT venceu a eleição
presidencial e é o lugar onde Bolsonaro encontra mais dificuldades para avançar
com suas políticas conservadoras e conquistar aliados. Para tentar reverter
essa tendência e chegar mais perto do povo, ele foi a Campina Grande (PB)
inaugurar o conjunto residencial Aluízio Campos, do Programa Minha Casa, Minha
Vida, criado pela ex-presidente Dilma Rousseff. Lula, que pensa, inclusive, em
mudar sua residência para o Nordeste, visitou dois estados. Na quinta-feira 14,
foi a Salvador (BA) para participar da reunião da Executiva Nacional do PT. E
no domingo estava programada uma viagem para Recife (PE), onde compareceria ao
festival nacional de música Lula Livre.O festival, agora orientado para
celebrar sua libertação, estava programado desde antes de Lula deixar a prisão.
Lei de segurança
A sensação é de que o governo quer que Lula opte pelo
caminho incendiário e da contundência verbal para encontrar um pretexto para
reprimir qualquer movimento popular. Bolsonaro tem dado sucessivas demonstrações
de incômodo com a democracia e isso ficou mais evidente quando um dos filhos do
presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro considerou a hipótese, “caso a
esquerda radicalize”, de um novo AI-5, medida autoritária que intensificou a
repressão na época da ditadura, fechou o Congresso e suspendeu garantias
constitucionais. Eduardo foi apoiado pelo pai e pelo ministro-chefe do Gabinete
de Segurança Institucional, general Augusto Heleno. O general, por sua vez,
incorporou a voz do filósofo Olavo de Carvalho, ideólogo do governo, que prega
a destruição da esquerda no Brasil e em toda a América Latina. Na
segunda-feira, depois das palavras de Lula, Bolsonaro afirmou que “a lei de
Segurança Nacional está aí para ser usada. Alguns acham que os pronunciamentos,
as falas desse elemento, que por ora está solto, infringem a lei. Agora nós
acionaremos a Justiça quando tivermos mais do que certeza de que ele está nesse
discurso para atender seus objetivos”, disse Bolsonaro.
Nos dias que antecederam a libertação de Lula, Bolsonaro,
temendo protestos populares e violência nas ruas, ordenou que o Exército
ficasse de prontidão para reprimir protestos que poderiam eclodir no País.
Antes de decisão do STF, o presidente informou ter conversado com o ministro da
Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, sobre a necessidade de preparar as
forças militares para algum tipo de convulsão social. “Não podemos ser
surpreendidos, temos que ter a capacidade de nos antecipar a problemas”, disse.
“Conversei com o ministro sobre a possibilidade de ter movimentos como tivemos
no passado, parecidos com o que está acontecendo no Chile, e a gente se prepara
para usar o artigo 142, que é pela manutenção da lei e da ordem”, disse
Bolsonaro. Parece que o governo teme a influência política de Lula e só espera
um pretexto para começar a usar a força. Se Lula e os grupos mais radicais do
PT entrarem no jogo de Bolsonaro, há o sério risco do jogo político evoluir
para uma guerra campal. O importante que a polarização não ultrapasse os
limites do discurso e do debate de ideias. E não descambe para qualquer tipo de
violência.
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