Neste momento, na Terra do Meio, coração da maior floresta tropical do
planeta, uma formação humana inédita está reunida para criar uma aliança
pela Amazônia. É um encontro de diferentes em torno de uma ideia comum: barrar
a destruição da
floresta e dos povos da floresta, hoje devorada por predadores de toda
ordem. Entre eles, as grandes corporações de mineração e o agronegócio insustentável.
É também um encontro para salvar a nós mesmos e as outras espécies, estas que
condenamos ao nos tornarmos uma força de destruição. Nesta luta, devemos ser
liderados pelos povos da floresta – os indígenas, beiradeiros e quilombolas que
mantêm a Amazônia ainda viva e em pé. Este é um encontro de descolonização. Por
isso, não um encontro na Europa nem um encontro nas capitais do Sudeste do
Brasil. Deslocar o que é centro e o que é periferia é imperativo para criar
futuro. Na época em que nossa espécie vive a emergência climática, o maior
desafio de nossa trajetória, a Amazônia é o centro do mundo. É em torno dela
que nós, os que queremos viver e fazer viver, precisamos atravessar
muros e superar barreiras para criar um comum global.
Em busca de soluções para barrar o desmatamento e o
extermínio da biodiversidade, Davi Kopenawa Yanomami,
Socorro de Barcarena, Anita Juruna, Isis Tatiane da Silva, Bedjai Txucarramãe,
Raimunda Gomes, Mitã Xipaya, Chico Caititu, Mukuka Xikrin, entre outras lideranças
indígenas, quilombolas e beiradeiras hoje estão sentados em círculo conversando
com as jovens lideranças do movimento Fridays For Future Anuna De Wever e
Adélaïde Charlier, da Bélgica, e Elijah Mackenzie, do Reino Unido, com os
ativistas do movimento Extinction Rebellion Robin Ellis-Cockcroft, Alejandra
Piazzolla e Tiana Jacout e com a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do
movimento Pussy Riot. Nesta
roda pela vida da Amazônia estão também alguns dos mais inspiradores cientistas
e pensadores do Brasil: o cientista da Terra Antonio Nobre, o arqueólogo
Eduardo Neves, as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Tânia Stolze, o
engenheiro florestal Tasso Azevedo e o cientista social Maurício Torres.
Todas estas pessoas deixaram suas casas e seus países
convidadas por mim, pelo Instituto Ibirapitanga, pelo Instituto
Socioambiental e pela Associação dos Moradores da Reserva Extrativista
Rio Iriri. Algumas viajaram semanas num barco à vela, para conhecer de forma
profunda, com seu corpo no corpo do território, a floresta e os povos da
floresta. É instinto de sobrevivência o que as move, mas é também amor. É
movimento de vida numa geopolítica que impõe a morte da maioria para o
benefício e os lucros da minoria que controla o planeta. É uma pequena grande
COP da Floresta criada a partir das bases. Aqui, não há cúpula.
Ao final desta travessia, parte deste grupo se somará ao
grande evento chamado Amazônia Centro do Mundo, que começa às 17 horas deste
domingo, 17 de novembro, em Altamira. Os movimentos sociais do Xingu e as organizações
da floresta, além da Universidade
Federal do Pará – campus Altamira, estão conjurando os brasis e os
brasileiros a deslocarem seu corpo para o verdadeiro centro do país e do
planeta para criar uma aliança pela Amazônia. Estes, que agora estão na
floresta, levarão suas vozes para que sejam somadas a destas outras vozes.
Neste centro, nos conjugamos no plural e nos realizamos no coletivo.
Em Altamira, o grupo da floresta encontrará lideranças
históricas, como Antonia Melo, do movimento Xingu Vivo, e Antonia
Pereira, da Fundação Viver Produzir e Preservar. Também Jackson Dias, do Movimento dos Atingidos
por Barragens (MAB), religiosos como os bispos Dom Erwin Kräutler e
Dom João Muniz e a sacerdotisa de umbanda Mãe Juci D’Óyá. Também artistas do
Xingu e de outras regiões do Brasil. Algumas das vozes mais representativas da
Amazônia atenderam ao chamado para virar uma voz só em defesa da floresta e de
seus povos. Altamira, epicentro da destruição da Amazônia, será epicentro de
uma aliança pela vida. Buscamos a paz para todos, humanos e não humanos – e não
apenas para alguns.
Lideranças de grande expressão estão trazendo seu
conhecimento para encontrar soluções para manter a floresta e seus povos vivos:
entre elas, Raoni,
indicado para o Nobel da
Paz, Maria Leusa Munduruku, representante de um dos povos indígenas que
mais lutam pela integridade da floresta e da bacia do Tapajós, Michael
Heckenberger, um dos mais renomados arqueólogos do planeta.
No encontro Amazônia Centro do Mundo haverá população da
cidade e da floresta. E também os produtores rurais que colocam alimento na
mesa da população, aqueles que respeitam os povos tradicionais e atuam
preservando a Amazônia, porque sabem que dela depende o seu sustento. Sabemos
que há fazendeiros
que destroem a floresta, mas também sabemos que há agricultores que a
respeitam e têm mudado suas práticas para responder aos desafios do colapso
climático que atingirá a todos, produtores que respeitam a lei e a democracia e
que também querem viver em paz. Pessoas que perceberam que precisam não apenas
parar de desmatar, mas reflorestar a floresta.
O fim do mundo não é um fim. É um meio. É o que os povos
indígenas nos mostram em sua resistência de mais de 500 anos à força de
destruição promovida pelos não indígenas. À tentativa de extermínio completo,
seja pela bala, seja pela assimilação. Hoje, meio milênio depois da barbárie
produzida pelos europeus, as populações indígenas não apenas não se deixaram
engolir como aumentam. E erguem, mais uma vez, suas vozes para denunciar que os
brancos quebraram todos os limites e constroem rapidamente um apocalipse que,
desta vez, atinge também os colonizadores: a maior floresta tropical do mundo
está perto de alcançar o ponto
de não retorno. Dizem isso muito antes do que qualquer cientista do clima.
Alguns de seus ancestrais plantaram essa floresta. Eles sabem.
Como Raoni tem repetido há décadas:
“Se continuar com as queimadas, o vento vai aumentar, o sol
vai ficar muito quente, a Terra também. Todos nós, não só os indígenas, vamos
ficar sem respirar. Se destruir a floresta, todos nós vamos silenciar”.
Os humanos, estes que sempre temeram a catástrofe na larga
noite do mundo, tornaram-se a catástrofe que temiam. Alteraram o clima do
planeta. Ameaçaram a sobrevivência da própria espécie na única casa que
dispõem. Mas não todos os humanos. Uma minoria dos humanos, abrigada nos países
desenvolvidos demais, consumiu o planeta. As consequências, porém, já são
sentidas pelas maiorias pobres e pelos povos que não cabem nas categorias de
rico e de pobre impostas pelo capitalismo.
Na Amazônia brasileira, estes povos são principalmente
indígenas, beiradeiros (ou ribeirinhos), e quilombolas. A ONU chama de “apartheid
climático”, mas talvez apartheid pressuponha que os que estão fora queiram
entrar. Essa crença de que o desejo maior de todos aqueles que não consomem é
se sentar à mesa do consumo. Como é a crença de que tudo o que uma “nação” deve
querer é crescer infinitamente, como se isso fosse possível. Não. Estes outros
que são chamados de povos tradicionais não querem entrar, se tornar também eles
devoradores de mundos. Eles querem que não destruam esta casa a qual pertencem,
mas não possuem nem querem possuir. Querem apenas viver nela segundo seus
próprios termos. Porque são parte dela, são outros e o mesmo.
Enquanto isso se passa na Amazônia há séculos, em 2018, no
lado de lá do mundo, uma garota de rosto redondo, uma trança loira de cada
lado, postou-se sozinha diante do parlamento sueco. Ela fazia uma greve escolar
pelo clima. “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu
futuro”, dizia. Aos 15 anos, Greta Thunberg,
hoje o mundo inteiro conhece o seu nome, inspirou um movimento de resistência
que abarcou o planeta.
Inspirada por ela, outras adolescentes, como Anuna De Wever
e Adélaïde Charlier, na Bélgica, e Luisa Neubauer, na Alemanha, levaram
milhares de jovens às ruas de vários países da Europa, Oceania, Ásia, África e
América. Já na primeira greve global, em março de 2019, mais de um milhão de
crianças e adolescentes deixaram a escola para denunciar a falta de políticas
públicas para enfrentamento do colapso climático e para barrar os grandes
poluidores do planeta. Também em 2018, o movimento Extinction
Rebellion (Rebelião contra a Extinção) bloqueou as pontes de Londres e
se espalhou por outras cidades do mundo, defendendo a desobediência civil e não
violenta para evitar a extinção em massa e a aniquilação da biodiversidade do
planeta.
A geração climática encarna a primeira grande adaptação
psíquica e comportamental ao Antropoceno, esta nova época geológica em que os
humano tragicamente substituíram a natureza como força dominante do planeta.
Pela primeira vez, os filhotes são obrigados a proteger o mundo que seus pais e
avós destruíram e destroem com afinco. Deve ser aterrorizante lutar contra
adultos que acreditam que o melhor que podem fazer por um filho é “lhe dar
tudo”, quando é justamente este “tudo” de materialidades que vem arruinando a
Terra. Os meninos e meninas europeus que vão às ruas estavam inscritos na
infância protegida, esta infância que na época do colapso climático já não pode
ser. Quando vão para as ruas apontar o dedo contra o sistema que exauriu o
mundo, estão sinalizando também a passagem para um outro conceito de infância.
O que esses jovens europeus que lutam pelo clima talvez não
saibam é que são também índios. Sua forma de compreender seu ser/estar no
planeta é muito mais semelhante a dos povos originários, com os quais nunca
conviveram, para além de referências distantes em livros e exposições, do que
semelhantes a de seus avós e bisavós. A compreensão de que a Terra é casa e que
a “casa está em chamas”, como diz Greta, os lançou numa outra inscrição. Nesta
inscrição parecem ter se tornado capazes de reconhecer outras gentes e também
as outras gentes de si.
É desta percepção que parte a ideia deste encontro na
floresta amazônica. Deslocamos o que é centro e o que é periferia para
recolocar o que estava deslocado. Numa época de emergência climática, vale
repetir mais uma vez, o centro do mundo é a Amazônia. A cada 24 horas, a maior
floresta tropical do planeta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera.
Pela transpiração. A floresta transpira e salva o planeta todos os dias. Como
aponta Antonio Nobre, cientista de Gaia, não há como conter o superaquecimento
global sem manter a floresta criando rios voadores. Uma apoteose
cotidiana não alcançável por nenhuma das obras-primas da arte humana.
Mas o centro do mundo é a Amazônia também porque nela
habitam os povos que sabem como viver no planeta sem destruí-lo, os povos que
compreendem, das mais diversas maneiras, que a sua carne é a carne da Terra. Os
povos que também são floresta. Os povos com os quais os brancos precisam
aprender, se eles ainda estiverem dispostos a ensinar, depois de tudo o que a
chamada “civilização” fez contra os seus corpos.
O encontro entre outros e outros acontece na floresta
profunda, no lugar chamado Terra do Meio, na bacia do Xingu. Um mosaico de
terras indígenas, reservas extrativistas ocupadas por beiradeiros, uma estação
ecológica e um parque nacional. Os não índios, os não beiradeiros, os não
quilombolas fizeram o gesto de se deslocar até o coração da floresta que é
também coração do planeta. Vieram para falar. Vieram principalmente para
escutar. E sentir. Os rios, as árvores, seus povos humanos e não humanos.
Reconhecem, com o deslocamento do corpo, a centralidade da floresta.
Vieram para a criação de uma aliança pela Amazônia. Vieram
também para a refundação de um humano outro, um que possa ser múltiplo. Este
encontro, este de corpo encarnado no corpo encarnado da floresta, de todas as
florestas que compõem a floresta, é o ponto inicial de uma tessitura de
múltiplas centralidades. É também um gesto de rompimento dos muros e das
barreiras que não param de se reproduzir sob o domínio dos déspotas eleitos – e
seus nacionalismos que deixam apenas os corpos que já exauriram de fora, depois
de já terem devorado as riquezas naturais de seus mundos. Nesta época de
nacionalismos de ocasião, os que vêm de dentro e de fora vêm também para
mostrar que não há fora, que somos +um+um+ na única casa que temos. A potência
desse gesto é tecer o comum na horizontalidade colorida de nossas diferenças.
É imensamente simbólico que as jovens ativistas climáticas
Anuna De Wever e Adélaïde Charlier tenham escolhido alcançar a Amazônia de
barco à vela desde a Europa. Não mais saltar sobre os mundos. Mas percorrê-los,
por semanas, no gesto de alcançar o outro e encontrar a si mesmas. Desta vez as
caravelas são de descolonização. Este é um encontro para descolonizar o
pensamento e também a ação. E é, sim, um encontro de índios. Os que sabiam que
eram, os que só descobriram agora.
Bem-vindos ao centro do mundo.
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