Em 1973, o grande economista Albert O. Hirschman publicou
artigo intitulado “A mutabilidade da tolerância à desigualdade de renda durante
o desenvolvimento econômico”. Nesse artigo, ele elaborou a tese do “efeito
túnel” a partir de metáfora prosaica. Imagine que você esteja preso em um
engarrafamento dentro de um túnel. De repente, a faixa ao seu lado começa a se
mover lentamente enquanto a sua continua absolutamente imóvel. A constatação de
que enfim o tráfego começou a se mexer lhe dá esperanças de que eventualmente a
sua faixa também passe a andar. Portanto, você haverá de tolerar a injustiça
inicial de sua imobilidade pois há a expectativa de que em algum momento a
movimentação incipiente lhe beneficie.
Assim descreve Hirschman os primeiros estágios do
desenvolvimento econômico. Quando as economias começam a se desenvolver e
crescer, algumas faixas de renda serão beneficiadas primeiro, deixando outras
para trás. Há, portanto, um aumento da desigualdade.
Contudo, a população tende a tolerar esse aumento da
desigualdade porque, como os carros dentro do túnel, têm a esperança de que em
breve os benefícios do crescimento econômico acabará lhes trazendo ganhos
semelhantes. Nas palavras de Hirschman, enquanto o efeito túnel durar, todos
sentem que a qualidade de vida melhorou, ainda que alguns tenham ficado ricos e
outros não.
É concebível, portanto, que distribuições desiguais de renda
sejam preferíveis a distribuições mais igualitárias, o que torna o aumento da
desigualdade politicamente tolerável, ou até desejável. Essa tolerância,
obviamente, é apenas eterna enquanto dura. Caso o ciclo de crescimento e
desenvolvimento acabe por frustrar as expectativas daqueles que não desfrutam
de seus benefícios, a tolerância inicial com a maior desigualdade de renda se
transformará rapidamente em ressentimento e intolerância. O efeito túnel é
portanto especialmente perigoso para os políticos, que não têm como saber
quando a tolerância haverá de se transformar subitamente em intolerância.
Embalados pelas expectativas positivas das primeiras etapas do ciclo de
crescimento, é provável que se tornem complacentes, ignorando a necessidade de
enfrentar as desigualdades criadas. Quando percebem a mudança, já é tarde
demais: o povo estará nas ruas ou nas urnas denunciando o mesmo processo que os
fez inicialmente acreditar na melhoria de vida, afirmando que os ricos se
tornaram mais ricos enquanto o resto ficou para trás.
O efeito túnel de Hirschman é incrivelmente poderoso para
explicar o que se passa hoje na América Latina – possivelmente em outras partes
do mundo também. Assim como no Brasil em 2013, as manifestações no Chile
pegaram o presidente e seu entorno de surpresa.
A indignação aparentemente repentina tomou conta das ruas
por uma razão aparentemente singela: um pequeno ajuste nas passagens de metrô.
Contudo, não foi o aumento do metrô que levou o povo para a rua, assim como em
2013 não foram os 20 centavos. A frustração derramada, às vezes com violência,
é fruto do esgotamento da tolerância, da sensação de que ficar naquela faixa
engarrafada que não vai a lugar algum dentro de túnel onde não há saídas é
insuportável. A conclusão inevitável é que políticas para retomar o crescimento
econômico são desejáveis e toleráveis apenas até um certo ponto. Caso não
resultem em redução das desigualdades e melhorias concretas de vida para todos
tornar-se-ão politicamente inviáveis.
Penso nisso quando vejo a precariedade dos empregos no
Brasil, o aumento da informalidade e da pobreza. Penso nisso quando vejo
anúncios de medidas econômicas que podem acabar esgarçando ainda mais a rota
rede de proteção social brasileira. Penso nisso quando vejo o ministro da
Economia com propostas para criar empregos para os mais jovens financiando-as
com tributos sobre o seguro-desemprego. Essas medidas revelam uma surdez cega
não apenas dirigidas aos ruídos estrepitosos de uma região que se levanta para
reclamar de seus líderes, como também em relação à realidade de um País
profundamente desigual – o único na América Latina que viu a pobreza aumentar
desde 2014, pouco importa de que governo seja a culpa por isso.
Pode ser que não aconteça nada. Pode ser que o Brasil
continue impávido frente aos problemas sociais existentes e ao que acontece ao
seu redor. Mas, não custa nada reler Hirschman. Em 1973, o alcance de sua visão
era bem maior do que o dos economistas da Universidade de Chicago na época.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for
International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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