No momento em que o Brasil atravessa um de seus mais graves
períodos de radicalizações e extremismos, pretender a convocação de uma
Assembleia Constituinte para resolver a questão da prisão em segunda instância
é como sugerir a realização de um Fla-Flu em praça pública – só briga e
pancadaria para todos os lados e nada de produtivo ao País. Por incrível que
pareça, é isso o que quer o presidente do Senado, Davi Alcolumbre: não o Fla-Flu,
mas a Constituinte. A mera hipótese de se discutir essa possibilidade já é, por
si só, um absurdo descomunal, o que dizer então de sua efetiva proposta. Claro
que a ideia, lançada na terça-feira 12, nasceu para sequer resistir, no quesito
durabilidade, ao feriadão prolongado. E não é para menos, de tão estranha que
se faz no universo político e jurídico.
Uma Assembleia Nacional Constituinte reflete,
necessariamente, o momento histórico no qual ela é eleita e se realiza, e tal
momento no Brasil de hoje levaria eventuais constituintes a se devorarem, uns
aos outros, não em nome de altos ideais e do interesse público, mas, isso sim,
em defesa de suas radicais posições ideológicas e de seus — mais radicais ainda
– interesses pessoais e patrimonialistas. Tratar-se-ia de um abominável
casuísmo.
Ironia? Quem dera!
Nenhuma reunião parlamentar tem de demonstrar tão impecável
funcionamento democrático como uma Assembleia Constituinte, uma vez que cada um
de seus integrantes — juridicamente um “constituinte originário” que engendrará
os demais “poderes derivados” — está investido do poder que lhe foi dado pelo
povo para decidir sobre as regras que ordenarão o funcionamento social desse
próprio povo. De tão impensável, a proposta de Alcolumbre chegou a ser
considerada uma simples ironia por sua assessoria. Quem dera! Quando aqueles
que lhe são próximos se deram conta, a coisa era séria e até já provocara justa
reação contrária do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia. “Volta e meia,
o debate da Constituinte vem à tona no Congresso. Se há novamente conflitos
sobre a questão da prisão em segunda instância, quero trazer esse debate da
Constituinte para esse momento importante da história”, disse Alcolumbre, sem
dizer nada. “Redigir uma nova Constituição é uma sinalização ruim. Se esse
assunto prosperar, vai gerar uma grande insegurança”, disse Maia, dizendo tudo.
Recentemente, o STF decidiu que o artigo 283 do Código de
Processo Penal (CPP) não se choca com o artigo 5º da Constituição Brasileira,
uma vez que ambos falam em prisão somente após o “trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”. Como não cabe ao STF legislar, a Corte abriu
então ao Congresso a possibilidade de alterar a Constituição ou o CPP. Nas
Casas Legislativas, é grande o receio de muitos parlamentares de que seus pares
votem pelo início do cumprimento da pena a partir da segunda instância, e isso
ocorre porque, igualmente grande, é o telhado de vidro de muitos deles. Toda a
discussão, porém, acaba sendo inócua nesse instante. Uma Assembleia Constituinte
só guarda sentido em momentos de rupturas institucionais, como foi, por
exemplo, a que se realizou no período de redemocratização do Brasil, após o fim
da ditadura militar. Dessa Constituinte nasceu em 1988 a atual Constituição
Cidadã, prevendo, ela própria, que depois de cinco anos não mais poderia ser
revisada pelo Congresso. Ou seja, desde 1993 não há como alterá-la em questões
como o “trânsito em julgado”, a não ser por meio de PEC, o que dificilmente
acontecerá porque teria de se obter três quintos dos votos na Câmara e no
Senado, e, assim mesmo, em duas votações.
Assessores de Alcolumbre acharam que ele estava brincando
quando falou de Constituinte para decidir sobre prisão em segunda instância
Em tese, uma PEC poderia então convocar uma Constituinte.
Como já se disse, porém, tal Assembleia só seria possível na hipótese de
ruptura institucional. A ideia de Alcolumbre é, assim, vazia. O Congresso
Nacional pode, isso sim, modificar o artigo 283 do CPP, e fazê-lo ditar que a
execução da pena terá início na segunda instância. Ficará ele, no entanto, em
desconformidade com a Constituição — e, então, novamente um mar de arguições de
constitucionalidades desaguará no STF. Será uma história sem fim.
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