Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico
Em agosto, depois das críticas do ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, aos dados preliminares de que as queimadas na Amazônia haviam aumentado, o presidente da República demitiu o cientista, culpou organizações não- governamentais pelo fogo na mata e acusou governadores de conivência com o incêndio das florestas.
Três meses depois, Jair Bolsonaro, ao ser questionado pelos dados do mesmo Inpe que indicam desmatamento apontou o dedo para a gestão da ex-ministra Marina Silva no Meio Ambiente, quando se registrou um dado um terço superior ao desmatamento atual, disse que se trata de uma questão “cultural” e sugeriu que identificação da titularidade das propriedades nas florestas facilitará a responsabilização de seus autores. Ainda não está claro como, além de beneficiar grileiros, a medida pode vir a proteger o meio ambiente, mas o gesto traz menos danos à imagem do Brasil no exterior do que a demissão do presidente do Inpe.
O dinheiro e a política baixaram a bola e o tom do discurso e da ação governamental. Não é um Bolsonaro paz e amor que parece estar em curso, mas uma segmentação do seu comportamento para plateias e fins específicos e uma calibragem maquiada das políticas de governo – e não apenas ambientais – guiada pelo instinto de sobrevivência.
Entre uma e outra reação do presidente, o Brasil foi passado para trás na fila de ingresso no clube dos ricos (OCDE), o leilão do pré-sal frustrou a atração de investidores, o dólar chegou a R$ 4,20 e a fuga cambial bateu o recorde registrado 20 anos atrás. Nem todas essas más notícias têm relação direta com o discurso miliciano do presidente (não apenas) na área ambiental. Tem empresa preferindo pagar dívida em dólar para tomar dinheiro num Brasil de juro mais baixo e investidor revertendo posições em Real tomadas na expectativa de que o leilão o apreciaria. Nenhuma dessas más notícias, porém, poderá ser revertida se a corda do extremismo for ainda mais esticada.
A ordem de moderação chegou até o ministro do Meio Ambiente. Depois de demitir Galvão do Inpe, Ricardo Salles fez uma rodada de viagens pela Europa, onde, em encontros com ministros alemães e ingleses, o comitê empresarial da OCDE, e jornalistas, custou a emplacar suas preleções. Ao longo desse tempo também cresceram seus conflitos com a ministra da Agricultura, Teresa Cristina. Pela primeira vez, o embate entre as duas pastas teve sinais trocados, entre a vista grossa do Meio Ambiente para a motosserra e a preocupação da Agricultura com os contratos de seus exportadores em mercados vigilantes na questão ambiental.
Foi nesta conjuntura que Salles tomou a decisão de se deslocar até São José dos Campos para o anúncio das más notícias sobre o desmatamento. Se as medidas a serem tomadas pelo governo não refletirem mudanças reais na política ambiental, terá gasto gasolina à toa, mas, na simbologia do poder, Salles deu a cara a bater e prestigiou o instituto que havia colocado em xeque.
Os sinais de inflexão não vêm apenas da retórica ambiental. O mesmo presidente que chegou a declarar alinhamento automático com os Estados Unidos, enumerou, para o aval de seus pares, as prioridades elencadas pelo Brasil como resumo de sua gestão à frente dos Brics e das metas futuras: fortalecimento da arquitetura econômico-financeira internacional, reforma do sistema multilateral, resolução de crises por meios diplomáticos e fortalecimento da cooperação entre os integrantes do bloco.
O surto de moderação presidencial se estendeu ao sumiço do vereador Carlos Bolsonaro das redes sociais e à decisão de remeter ao laranjal da Pasta do Turismo, e não ao pomar de aberrações ideológicas do ministro da Educação, Abraham Weintraub, as atribuições do ex-ministério da Cultura abrigadas, até então, sob o guarda chuva de Osmar Terra (Cidadania).
Bolsonaro também tem se revelado cauteloso em relação ao fôlego curto dos primeiros sinais de reativação da economia. Sinal disso foi o freio em relação à reforma administrativa, proposta que confronta um segmento cujo poder de fogo ainda está por ser testado. Fora os professores, categoria que foi para a rua de braços dados com aqueles da iniciativa privada, os funcionários públicos ainda não demonstraram, neste governo, disposição de ir para o confronto.
Além disso, o risco do continente em chamas reduz o ímpeto reformista. A classe média chilena empurrada para a rua foi empobrecida por custos crescentes de educação e saúde e benefícios previdenciários arrochados, num ambiente em que, a despeito do crescimento da economia, é de desigualdade cristalizada. Os efeitos, ainda incertos, de um dólar valorizado no Brasil acrescem, à doença chilena, uma pitada de moderação.
É claro que a presidência-bipolar não autoriza que se tracem tendências, mas a moderação, além de imperativos imediatos relacionados às expectativas da economia, e afetada por aqueles de mais longo prazo vinculados ao maior rival de Bolsonaro na política. Reconfigurado para registrar o retorno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o GPS presidencial tenta distanciar Bolsonaro da extremidade direita para evitar que o rival ocupe espaços.
Tanto Lula quanto Bolsonaro buscarão ocupar este grande deserto de homens e ideias que hoje está no centro da política. Tentarão fazê-lo sem deixar a descoberto os pólos dos quais hoje são titulares. A rota de Lula começará a ser conhecida no congresso petista que se inicia amanhã em São Paulo. A do presidente da República, por errática, segmentada e, em grande parte, submersa, escapa a uma tradução ligeira.
Por mais moderado que o discurso presidencial possa parecer, o extremismo pode ser terceirizado para a estratégia digital de seu governo e, principalmente, do seu novo partido. Resta ainda o ímpeto bolsonarista suscitado pelos instintos mais primitivos. Só o da sobrevivência na política será capaz de moderá-lo.
quinta-feira, 21 de novembro de 2019
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