Depois de “o nazismo foi de esquerda”, a nova temporada na
série de falsificações históricas do bolsonarismo tem o ditador chileno Augusto
Pinochet como herói principal. O pinochetismo é outra ideologia que, depois de
bem velhinha, veio morar no Brasil: a direita chilena hoje no poder, a começar
pelo próprio presidente Sebastián Piñera, tenta ao máximo se afastar do
pesadelo dos anos Pinochet.
Não por acaso, quando Jair Bolsonaro atacou o pai da
ex-presidente Michelle Bachelet, torturado e assassinado pela ditadura chilena,
Piñera —recém-chegado de Brasília, no auge da crise dos incêndios na Amazônia—
foi forçado a ir à TV se distanciar do aliado brasileiro.
A ironia maior é que Pinochet representa a antítese de
vários valores que o bolsonarismo diz representar.
Aos lavajatistas roxos, por exemplo, vale lembrar que
Pinochet foi talvez o líder mais corrupto da história do Chile. Quem descobriu
isso não foi Cuba, mas o Senado e o Departamento de Justiça dos EUA —o mesmo
que ajudou o Ministério Público brasileiro a derrubar o cartel das
empreiteiras, na era petista.
Quando os EUA apertaram o cerco contra lavagem de dinheiro,
no pós-11 de setembro, encontraram milhões de dólares de Pinochet em um
arquipélago global de contas secretas e offshores. A investigação acabou por
destruir o Riggs Bank, de Washington, que ajudava o ditador a esconder a
fortuna.
Aos saudosistas do regime militar brasileiro: seis meses
após o golpe no Chile, Pinochet já havia se tornado uma figura tão tóxica que o
novo presidente Ernesto Geisel, por meio do Itamaraty, pediu explicitamente que
não viesse à sua posse, em Brasília. Ele veio mesmo assim, mas Geisel recusou
convites insistentes para uma visita oficial ao Chile.
As repressões chilena e brasileira colaborariam —agentes da
Dina, a polícia secreta chilena, chegaram a ser treinados no Brasil—, mas o
país terminaria por boicotar os planos mais ambiciosos de Pinochet, sobretudo
na Operação Condor.
Trumpistas brasileiros talvez se esqueceram de que Pinochet
ordenou um atentado terrorista no coração de Washington, com o carro-bomba que
matou o ex-ministro Orlando Letelier e dois cidadãos americanos. Aliás, Ronald
Reagan, herói conservador, tinha péssimas relações com o ditador.
Os EUA ajudaram a destruir a democracia chilena, em 1973,
mas também pressionaram pela saída de Pinochet, em 1990.
Quem defende pena de morte a traficante faria bem em saber
que a Dina, sob ordens de Pinochet, tornou-se um cartel da cocaína aliado aos
narcos colombianos. Segundo o chefe da agência, Manuel Contreras, uma de suas
inovações foi a chamada “coca negra”, supostamente à prova de cães farejadores.
Chicago Boys (ou “Oldies”) deveriam ver a nova literatura
sobre história econômica do Chile. Resumo: Salvador Allende destruiu o país,
mas o chamado “milagre chileno” é um mito e, sob a democracia, o Chile cresceu
muito mais e acelerou a melhora de todos os indicadores sociais. Claro, isso
foi possível porque a esquerda incorporou parte da agenda da direita —mas,
pelas últimas notícias de Santiago, os custos desse programa foram gravemente
subestimados.
E, mais ainda, como pode alguém que diz defender valores
judaico-cristãos, a família e a castidade adular um regime que perseguiu
líderes religiosos, desapareceu crianças e usou o estupro como arma?
Talvez o pinochetismo tupiniquim seja fruto da ignorância
histórica, da política feita de memes e gritaria online —e espero que as
informações acima tragam alguma luz. Mais provável, porém, é que Pinochet
esteja sendo celebrado no Brasil de hoje justamente pelo que, de fato, foi: um
assalto à democracia, ao Estado de direito, às liberdades e à condição humana.
*Roberto Simon, é diretor sênior de política do Council of
the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em
relações internacionais pela Unesp.
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