Consagrado autor de sucessos como “O Bem-Amado” e “Roque
Santeiro”, Dias Gomes, um dos mais perseguidos
pela censura na ditadura militar, certa vez resolveu tentar entender
um dos cortes exigidos em uma de suas novelas, “Saramandaia”, e foi a Brasília
conversar com o censor, que se saiu com essa: “Bem, o que o senhor colocou aí
no texto, quando se lê, parece não ter problema nenhum, não é? Mas o que o
senhor estava pensando quando escreveu esse diálogo, aí é que está o problema”.
Mais de quatro décadas se passaram e cá estamos de volta às
bizarrices da censura com esse governo que mais parece uma novela de Dias
Gomes. A escalada censória avançou nesta semana com o anúncio de um órgão
de monitoramento
das escolas, que irá analisar o conteúdo de materiais didáticos e receber
denúncias contra professores que “atentem contra a moral, a religião e a ética
das famílias”.
A divulgação foi feita nesta terça-feira (19) pela ministra
Damares Alves (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), que
disse que “o estado é laico, mas sou terrivelmente cristã”. Na quarta-feira
(20), o ministro Abraham Weintraub (Educação) elevou ainda mais o tom ao ameaçar
barrar o envio de verba federal a municípios e estados que não tomem
medidas em relação às escolas que forem denunciadas. Esse programa, que na
prática institucionaliza a censura, será uma parceria dos dois ministérios.
Não bastasse o absurdo em si do ímpeto de controlar o que se
ensina aos alunos, partimos para o universo surreal de determinar então o que
seria “atentar contra a moral, a religião e a ética das famílias”. Quando Dias
Gomes foi a Brasília conversar sobre o corte em “Saramandaia”, começou o
diálogo com o censor assim: “Vamos supor que, de hoje em diante, eu quisesse
ser um bom moço e quisesse seguir a orientação da censura. Nesse caso, gostaria
de saber que critérios deveria seguir”.
Da mesma forma, poderíamos perguntar a Damares e a
Weintraub se, vamos supor, um professor quiser ser um bom moço, que
critérios deveria seguir: pode discutir o movimento LGBT? Pode dar aula sobre
candomblé e todas as religiões? Pode fazer um debate sobre a decisão do STF que
teve como consequência a liberdade de Lula? Pode falar da ditadura militar,
inclusive a respeito da tortura? E sobre censura, pode?
A opção pró-censura desse governo é tão ferrenha que não
houve nem a preocupação em dar qualquer verniz “democrático” à iniciativa, como
anunciar, por exemplo, que as denúncias seriam analisadas por um grupo de
educadores, psicólogos etc. Eles próprios, além, claro, do presidente
Bolsonaro, se colocam tranquilamente no papel de quem pode impor o que uma
criança ou um jovem devem aprender nas escolas.
Pelo histórico dessa turma, aquele censor que tentou proibir
o pensamento de Dias Gomes e tantos outros serão fichinha. Nem a famigerada
Solange Hernandez, diretora da Censura na ditadura conhecida por Solange
Tesourinha pela gana de cortar obras porque via pornografia em tudo, deve ser
páreo para uma ministra que diz que a princesa de “Frozen” termina sozinha no
castelo porque é lésbica, o que incentiva as meninas a sonhar com princesas, em
vez de príncipes. Pode isso, Damares!?
Laura Mattos
Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado –
Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.
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