sexta-feira, 22 de novembro de 2019

PODE ISSO, DAMARES !?

Laura Mattos, Folha de S.Paulo
Consagrado autor de sucessos como “O Bem-Amado” e “Roque Santeiro”, Dias Gomes, um dos mais perseguidos pela censura na ditadura militar, certa vez resolveu tentar entender um dos cortes exigidos em uma de suas novelas, “Saramandaia”, e foi a Brasília conversar com o censor, que se saiu com essa: “Bem, o que o senhor colocou aí no texto, quando se lê, parece não ter problema nenhum, não é? Mas o que o senhor estava pensando quando escreveu esse diálogo, aí é que está o problema”.
Mais de quatro décadas se passaram e cá estamos de volta às bizarrices da censura com esse governo que mais parece uma novela de Dias Gomes. A escalada censória avançou nesta semana com o anúncio de um órgão de monitoramento das escolas, que irá analisar o conteúdo de materiais didáticos e receber denúncias contra professores que “atentem contra a moral, a religião e a ética das famílias”.
A divulgação foi feita nesta terça-feira (19) pela ministra Damares Alves (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), que disse que “o estado é laico, mas sou terrivelmente cristã”. Na quarta-feira (20), o ministro Abraham Weintraub (Educação) elevou ainda mais o tom ao ameaçar barrar o envio de verba federal a municípios e estados que não tomem medidas em relação às escolas que forem denunciadas. Esse programa, que na prática institucionaliza a censura, será uma parceria dos dois ministérios.
Não bastasse o absurdo em si do ímpeto de controlar o que se ensina aos alunos, partimos para o universo surreal de determinar então o que seria “atentar contra a moral, a religião e a ética das famílias”. Quando Dias Gomes foi a Brasília conversar sobre o corte em “Saramandaia”, começou o diálogo com o censor assim: “Vamos supor que, de hoje em diante, eu quisesse ser um bom moço e quisesse seguir a orientação da censura. Nesse caso, gostaria de saber que critérios deveria seguir”.
Da mesma forma, poderíamos perguntar a Damares e a Weintraub se, vamos supor, um professor quiser ser um bom moço, que critérios deveria seguir: pode discutir o movimento LGBT? Pode dar aula sobre candomblé e todas as religiões? Pode fazer um debate sobre a decisão do STF que teve como consequência a liberdade de Lula? Pode falar da ditadura militar, inclusive a respeito da tortura? E sobre censura, pode?
A opção pró-censura desse governo é tão ferrenha que não houve nem a preocupação em dar qualquer verniz “democrático” à iniciativa, como anunciar, por exemplo, que as denúncias seriam analisadas por um grupo de educadores, psicólogos etc. Eles próprios, além, claro, do presidente Bolsonaro, se colocam tranquilamente no papel de quem pode impor o que uma criança ou um jovem devem aprender nas escolas.
Pelo histórico dessa turma, aquele censor que tentou proibir o pensamento de Dias Gomes e tantos outros serão fichinha. Nem a famigerada Solange Hernandez, diretora da Censura na ditadura conhecida por Solange Tesourinha pela gana de cortar obras porque via pornografia em tudo, deve ser páreo para uma ministra que diz que a princesa de “Frozen” termina sozinha no castelo porque é lésbica, o que incentiva as meninas a sonhar com princesas, em vez de príncipes. Pode isso, Damares!?
Laura Mattos
Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.
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