Política é luta, disputa, busca de poder. Não pode ser
vivida e praticada como se a harmonia e o entendimento apagassem contradições e
diferenças. O elogio do conflito como fator de propulsão política é comum ao
pluralismo liberal e à teoria da luta de classes.
O dissenso – o direito a ele, a liberdade de expressão,
pensamento e crítica – faz parte da democracia, que não pode viver sem ele e
sem os embates por ele propiciados. Nem toda polarização produz guerra de
extermínio. Nas democracias os polos se respeitam, convivem, fiscalizam-se,
podem até cooperar.
A ideia de consenso deve ser posta em termos claros,
determinados. Apresentada em abstrato é uma ilusão perigosa, que pode levar à
banalização do conflito e à “reconciliação” entre atores que precisam manter-se
como diferentes para que a luta política adquira pleno significado e possa até
mesmo dissolver os antagonismos maniqueístas. Consenso de modo algum significa
a suspensão do conflito ou a dissolução das diferenças.
Observadores da cena política nacional dizem que a atual
polarização entre bolsonarismo e lulismo não pode ser eliminada por um consenso
centrista, que não teria força social para prevalecer. Alguns veem o consenso
não como algo a ser construído, mas como mera tradução da realidade. Acreditam que,
se nenhum bloco de forças é suficientemente forte, a proposição de um amplo
entendimento seria diversionismo fadado ao fracasso.
Para complicar, entendem a polarização de modo restrito: só
a percebem como virtude, numa reprodução empobrecida da visão liberal-pluralista
que concebe o conflito como impulsionador da democracia. Preocupam-se em atacar
uma hipotética “terceira via”, que entendem em chave funcionalista, como
“meio-termo”. Pensam que ser radical é proclamar as razões de um polo contra
outro, com o que rejeitam qualquer esforço de mediação.
A política é sempre polarizada, mas nem toda polarização
fornece oxigênio à política. É necessário ir além das abstrações teóricas,
admitir e reconhecer especificidades para, então, compreender o limite e o equívoco
das polarizações binárias, não dialéticas: nós contra eles.
Polarizações paralisantes podem ser inevitáveis, mas não são
virtuosas. Envenenam a luta política e alienam a população, na medida em que
sugerem que toda decisão sempre reflete o interesse de um polo em combater o
polo oposto. Nelas não há um movimento de superação, o encontro de um terceiro
termo que negue os termos polares e os incorpore num novo arranjo.
É o caso da atual contraposição entre bolsonaristas e
lulistas, que impede a sociedade de conhecer propostas renovadoras. Tudo é
exibido na cena pública como um filme já visto. Vive-se o conflito polarizado
com doses extra de intolerância e agressividade, de onde sai uma névoa de
desentendimentos (mais aparentes que reais) que incrementam o atrito e a
fragmentação.
Romper polarizações desse tipo requer tenacidade, liderança
personalizada, símbolos fortes, ideias. Nenhum sucesso virá da repetição ad
nauseam do mantra do “centro”. Mas é improvável que haja avanço substantivo na
vida nacional sem uma inflexão para o centro de um dos polos dominantes. Se tal
não ocorrer, uma eventual disputa eleitoral será vencida pelo polo que detiver
mais recursos de poder, usá-los com frieza e alcançar uma boa narrativa de
campanha. Não é preciso muita inteligência para descobrir qual polo seria esse.
O bolsonarismo não tem capacidade de infletir para o centro,
nem sequer para o centro liberal-conservador, em que pese ter hoje a seu lado
uma figura como Paulo Guedes, que está no governo por questões outras. Seu
autoritarismo retrógrado e suas grosserias abjetas o tornam repulsivo ao
moderantismo liberal, do mesmo modo que o “libertarismo” cosmopolita dos
liberais causa engulhos nos bolsonaristas.
Uma unidade democrática pelo centro e com o centro só será
vitoriosa se for progressista. Ou seja, se estiver aberta para a esquerda, se
for sensível aos problemas sociais do País e fizer da democracia política uma
cláusula pétrea. Seu sucesso depende da capacidade que tiver de articular as
correntes moderadas numa operação democrática com vocação para se aprofundar.
Nas circunstâncias de hoje, significa pensar em unidade democrática: um teto
sob o qual os diferentes se reúnam.
A hipótese de um “centro progressista” que exclua ao mesmo
tempo os eleitores do bolsonarismo e do lulismo não tem espaço suficiente para
progredir, o que explica suas recorrentes dificuldades de afirmação.
Muita coisa passa pelos cálculos de Lula e do PT, que hoje
oscilam entre uma frente ampla e um frente de esquerda. Nas personalidades e
forças que orbitam o partido, a ideia de “frente ampla” não é tão ampla assim e
prevê alta dose de protagonismo petista, o que a restringe. Se o foco for o
confronto generalizado – rage against the machine –, com ataques às
instituições e apelos a um revolucionarismo retórico, se essa esquerda agir em
nome da autoafirmação e de uma visão programática sectária, ela se autoexcluirá
e o “centro progressista” terá de buscar novas fontes de energia, por ora
inexistentes.
O problema são os vetos cruzados.
A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre
lulistas e bolsonaristas, conservadores e reacionários, liberais e socialistas,
mas essa divisão não assume forma política perfeita. Estrutura-se como choque
de “narrativas” que se excluem reciprocamente, misturadas com postulações
identitárias e batalhas corporativistas. A polarização paralisante reflete a
dificuldade que democratas liberais, de centro e de esquerda têm de apresentar
à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder. Cada um, até agora,
permanece mergulhado em seus meandros e fantasias.
A polarização entre lulismo e bolsonarismo está dada, mas
não interessa à democracia. Só beneficia o atraso político. Não deveria ser
alimentada.
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