segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

O MERCADO E A MORAL

Samuel Pessôa, Folha de S.Paulo
Na sexta-feira (17), há duas semanas, descobrimos que o secretário da Cultura era (ou pelo menos pareceu ser) nazista.
Essa conclusão segue a de o secretário ter empregado claramente texto e estética nazistas para divulgar uma ação de sua secretaria.
A sociedade respondeu prontamente. A política esteve vigilante. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, produziram tempestivamente notas de repúdio. Não restou outro caminho ao presidente que não a demissão sumária do secretário.
Difícil saber o que significou o experimento do secretário. Parece que se trata de tatear os limites da democracia. A democracia requer que todos estejamos vigilantes. A sociedade passou com louvor no teste.
Um tema que incomodou foi a coincidência de naquela sexta-feira, simultaneamente à divulgação do vídeo, os mercados financeiros terem operado em alta.
Vários motivos podem explicar os movimentos daquela sexta. Movimentos dos mercados internacionais, que geralmente guiam nosso mercado doméstico, bem como a “devolução” (movimento em sentido inverso) em seguida à piora causada pela divulgação de números ruins para a economia brasileira referentes a novembro.
Após resultados ruins para a indústria, os serviços e o varejo, houve na quinta (16) a divulgação, pelo BC, de que a economia como um todo caminhara bem em novembro. É comum haver discrepância em diferentes termômetros da atividade econômica no curtíssimo prazo. O mercado, arisco, tende a ir para lá e para cá nessas ocasiões.
A questão é: pode-se esperar do mercado um comportamento que julgue moralmente fatos sociais relevantes?
Por exemplo, ao sabermos que o secretário de Cultura é nazista (ao menos que cultua símbolos nazistas), os preços de mercado deveriam cair?
Os mercados só cairiam se esse fato sugerisse aos operadores, gente que compra e vende, que o desempenho da economia iria ser pior do que seria antes de que essa informação fosse revelada.
Também cairia se os operadores, mesmo considerando que a economia não pioraria, achassem que os outros operadores pensariam que a economia iria piorar.
É essa a estrutura de incentivos que regula a atividade de compra e venda de ativos financeiros, cuja agregação para todas as pessoas que trabalham nesse setor chamamos de mercado financeiro.
Mas os mercados erram. Erram coletivamente. É verdade. Mas eles não ocorrem em razão de uma certa imoralidade do mercado. Se ele fosse moral, em algum sentido, não me parece que os erros em termos econômicos seriam menores.
Por outro lado, é impossível que uma estrutura descentralizada opere de forma contrária aos incentivos que a regulam.
Os mercados erram —não previram o crash de 1929, que levou à Grande Depressão, nem a crise de 2008— pois há uma grande assimetria em sua estrutura de incentivos. Errar sozinho é muito pior que errar coletivamente. E ganhar sozinho é melhor, mas não muito melhor, do que ganhar coletivamente.
Para complicar a vida, para acertar, não é suficiente encontrar inconsistências e operar na direção contrária. É necessário acertar o momento em que essas inconsistências produzirão alteração nos preços e operar um pouco antes.
Várias pessoas enxergaram corretamente as inconsistências no mercado de hipotecas americano nos anos 2000. Muitas delas com antecedência demais e acabaram perdendo (ou deixando de ganhar) dinheiro.
A defesa da democracia é imperativo moral de cada cidadão e das instituições que representam a cidadania.
Já o mercado financeiro requer regulação eficiente. Que seja simples e transparente e que alinhe incentivos privados aos sociais. Fácil de escrever, difícil de efetivar. Mas isso é outra história.
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
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