O historiador comunista Perry Anderson tinha 29 anos quando,
em 1968, clamou por uma espécie de “revolução cultural” na sua Grã-Bretanha:
“Sem teoria revolucionária, escreveu Lenin, não pode existir movimento
revolucionário. Gramsci adicionou: sem uma cultura revolucionária, não haverá
teoria revolucionária.” Há coisas que a atriz Regina Duarte deve aprender antes
de concluir sua “temporada de testes” na Secretaria da Cultura.
Só chamamos de presepada o monólogo plagiário de Joseph
Alvim porque seu edital do Prêmio Nacional das Artes cingia-se ao valor
insignificante de R$ 20 milhões. Goebbels, o original, operava à frente da
Câmara de Cultura do Reich, que controlava orçamentos bilionários e tinha o
poder de decidir quais produtores culturais seriam autorizados a trabalhar. Na
ideia de submeter a cultura ao Estado (isto é, ao Partido) encontra-se um dos
muitos traços comuns entre os totalitarismos de direita e de esquerda.
A URSS stalinista pretendia erigir uma “cultura proletária”,
na forma do realismo socialista, sobre as ruínas da “cultura burguesa”. A
Alemanha nazista almejava criar uma cultura autenticamente “ariana” sobre as
cinzas da “arte degenerada”. O imitador tropical caído, “um secretário da
Cultura de verdade”, queria “atender o interesse da população conservadora e
cristã”, segundo Jair Bolsonaro. Regina pisa sobre as brasas ardentes do desejo
governamental de concentrar um poder ilimitado: o de definir o pensamento, as
emoções, as sensibilidades e os comportamentos dos brasileiros.
A cruz dos templários, um dos signos do espaço cênico
montado por Joseph Alvim, fala tanto ou mais que as linhas do plágio direto.
Ironicamente, os templários, uma ordem militar cruzadista, foram dizimados pela
Inquisição, esse primeiro grande projeto de dominação cultural.
A Igreja queimava bruxas para, por meio do exemplo,
disciplinar as mentes. Jules Michelet explica: “A Missa Negra, em seu primeiro
aspecto, pareceria ser essa redenção de Eva, maldita pelo cristianismo. A
mulher desempenha todos os papéis no sabá. É o sacerdote, é o altar, é a hóstia
de que todos comungam. No fundo, não será ela o próprio Deus?”. A fogueira
cumpria as funções de um edital de Joseph Alvim: a supressão definitiva dessa
Eva sem rumo, desse Deus sem Igreja. Regina sabe disso, suponho, pois nem
sempre foi a doce “namoradinha do Brasil”.
Há 40 anos, Regina representou a lendária cristã-nova
paraibana Branca Dias, neta de um judeu converso, presa e executada pelo Santo
Ofício, na peça “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes. Ela lembra, com certeza,
que a acusação era dupla: “judaísmo” e “práticas imorais”. Provavelmente ainda
recorda a frase inicial de Padre Bernardo: “Os que invocam os direitos do homem
acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que
aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos,
eliminando os que querem subvertê-la”. Só não podia ter sido escrita por
Bolsonaro pois não contém erros de português.
Digam o que disserem seus detratores, não acredito que a
Regina de hoje, “noivinha” de Bolsonaro, resolveu mudar de papel, representando
o acusador de Branca Dias. Creio, até prova em contrário, que ela quer mesmo
“pacificar a relação da classe com o governo”. É uma ambição menor,
corporativista — mas, ainda assim, provavelmente utópica.
Na nossa tradição recente, a pasta da Cultura serve aos
interesses dos produtores culturais (a “classe artística”, ou seja,
basicamente, os lobbies de músicos e cineastas), não aos interesses públicos. O
convite a Regina indica um retorno à tradição, o que implicaria a renúncia ao
programa cultural totalitário acalentado pelo núcleo ideológico do governo. A
sinalização provocou suspiros de alívio num país de esperanças miniaturizadas.
Contudo, que ninguém — sobretudo Regina — se deixe iludir: o recuo é tático,
incerto, provisório.
Cachorros loucos babam, porque têm raiva. Logo, Regina será
tachada de “imoral”, “esquerdista” — em síntese, bruxa. Na esquina, ansioso
pelo lugar dela, espreita o vulto do Padre Bernardo.
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