Os canhões ainda estavam embuçados pela fumaça no fim da 1ª
Grande Guerra quando o mundo começou a enfrentar um novo, silencioso, e
invisível inimigo: a chamada Gripe Espanhola, o maior holocausto médico
da história da humanidade. A praga apareceu pela primeira vez em
fevereiro de 1918 na cidade de San Sebastián, movimentado ponto turístico
da costa setentrional da Espanha. Foi considerada uma gripe banal e logo
esquecida. A região desfrutava de um clima agradável e ameno, onde podiam ser
esquecidos os horrores das trincheiras da França, do outro lado da fronteira,
cenário de destruição e desgraças, onde os Aliados lutavam desde 1914
contra os alemães e os países que apoiavam o Kaiser Guilherme II.
A Espanha era uma nação neutra, não se envolvera na guerra
iniciada contra a Sérvia quatro anos atrás, após o assassinato do Arquiduque
Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria. Ferdinando tinha sido
abatido a tiros, em Sarajevo, junto com sua mulher por um
nacionalista iugoslavo. Na ensolarada San Sebastián era possível
encontrar-se momentos de paz , longe não só do estrugir dos canhões como dos
efeitos do gás mostarda que produzia uma névoa esverdeada letal, a mais nova
arma de guerra alemã.
De repente, a gripe chegou. Não foi nada alarmante,
apenas dois ou três dias de febre, seguidos de ligeiro mal-estar. No início, o
vírus parecia escolher suas vítimas, atacava preferencialmente adultos jovens,
poupando velhos e crianças, ao contrário do que acontece atualmente com o
Coronavirus. Estudos recentes sustentam que os idosos não foram
contaminados pelo vírus por terem adquirido resistência imunológica durante a
pandemia ocorrida entre 1889 e 1890, conhecida como a ” Gripe Russa
“.
Em março de 1918, soldados americanos que passavam por San
Sebastián à caminho do front começaram a adoecer. Dois meses depois, o Rei
Afonso XIII e oito milhões de súditos também estavam enfermos. Um terço da
população de Madrid exibia sintomas de uma gripe como jamais se viu. Atividades
governamentais foram suspensas, o comércio fechou as portas, os bondes deixaram
de circular. A Espanha havia sido capturada pelo medo da peste.
A primeira onda da gripe começou logo a se espalhar
pelo mundo. As tropas aliadas referiam-se a esse surto como ” a febre dos
três dias “, embora durasse em média uma semana. Manifestava-se através
de rápida elevação da temperatura, o rosto ficava logo vermelho, a cabeça
latejava, os ossos doíam. Esse quadro desaparecia após intensa transpiração, o
corpo ficava dolorido durante 15 dias, e a gripe desaparecia. Na primavera de
1918, poucos perceberam que a epidemia havia atravessado o Atlântico e
atingido os Estados Unidos. Cerca de mil operários americanos que trabalhavam
na Ford queixavam-se de febre e moleza no corpo. Em abril, 500 dos 1.900
presidiários de San Quentin estavam doentes.
O maior número de baixas tinha ocorrido, entretanto, em um
campo de treinamento no Kansas, onde cerca de 20 mil recrutas estavam sendo
preparados para lutar na Europa. A epidemia alastrou-se por outros acampamentos
do exército, mas as autoridades sanitárias não deram muita importância, gripes
e resfriados eram comuns em áreas onde milhares de homens de diferentes cidades
passavam a viver juntos, misturando-se e passando vírus de uns para outros.
Os primeiros sinais de alarme ocorreram no final de maio
quando a gripe apareceu na França. Tropas, inglesas, americanas,
francesas e a população civil começaram a exibir os primeiros sintomas do
vírus. No mês seguinte, ele chegava à Inglaterra, deixando o Rei
Jorge V de cama. Logo depois alcançava a Ásia. Em junho, a gripe
passou a interferir no curso da guerra. A Grande Frota do Rei Jorge foi
abalroada pela pandemia antes mesmo de zarpar. Os seus 10.300 homens foram
obrigados a desembarcar e permanecerem em terra durante três semanas,
retardando o fim do conflito que só ocorreria em novembro.
Nem os alemães foram poupados pela epidemia. Todos os dias,
o general Erich von Ludendorff amaldiçoava a gripe, dizia
que ela debilitava os soldados e frustrava seus vitoriosos
planos de ataque contra os Aliados. Apesar de se ter
espalhado pelo mundo durante a primavera de 1918 havia regiões do planeta onde
a ” influenzza “, como era também conhecida, não tinha produzido vítimas.
A maior parte da África, Canadá e América do Sul não havia sido
contaminada pelo vírus. Quando chegou o verão, os Estados
Unidos e os países europeus sentiram extraordinário alívio. A gripe parecia ter
desaparecido de vez sem deixar vestígios, como se jamais tivesse existido.
Alguns meses depois, em setembro, quase no fim da 1ª Grande
Guerra, ela estava de volta como uma maldição. A segunda onda da gripe,
além de extremamente contagiosa, havia-se transformado em uma peste assassina.
Escolhera como caminho de volta os lugares por onde não havia passado.
Cerca de 80% das pessoas atingidas pelo vírus não conseguiam sobreviver. Ela
era 25 vezes mais letal que sua antecessora e a gripe comum.
Os doentes morriam em questão de dias, ou mesmo de
horas, com os pulmões entupidos de catarro. Na maioria dos casos, ela começava
como se fosse uma simples gripe, os pacientes respiravam com
extrema dificuldade, deliravam com febre alta, sentiam calafrios, dores
no corpo. Os pulmões infestados por bactérias, contraíam pneumonia,
as pessoas contaminadas ficavam inconscientes, e morriam um dia depois.
A segunda onda maldita chegou aos Estados Unidos em
agosto, trazida por um grupo de marinheiros desembarcados em Boston. Semanas
depois começaram os óbitos. Em Fort Devens, Massachusetts, a 50 km a
oeste de Boston, cerca de 60 mil soldados tinham sido contaminados por um tipo
de pneumonia galopante jamais visto. Após serem infectados pela gripe, exibiam
manchas castanho-avermelhadas no rosto, horas depois a cianose estendia-se
por toda a face a partir das orelhas. A morte chegava em poucas horas. ” Era
difícil distinguir um homem branco de um negro “, escreveu um dos médicos
do acampamento. Os pacientes ficavam com falta de ar e morriam sufocados. Como
não havia caixões suficientes, os corpos eram empilhados como sacas de arroz no
necrotério do quartel. Os coveiros não tinham como enterrá-los porque também
estavam doentes. Foram abertas covas coletivas e os mortos sepultados sem
caixões, embrulhados nos próprios lençóis.
Os médicos militares patologistas enviados por Washington a
Massachusetts ficaram horrorizados com que viram. O rosto dos soldados
contaminados ficavam azulados, eles tossiam convulsivamente e o escarro que
expeliam estava sempre tingido de sangue como se tivessem tuberculose. As
enfermeiras sabiam que quando os pés dos doentes ficavam escuros, não
havia muito o que fazer. Naquela época não havia também antibióticos nem
respiradores como nos dias de hoje. Os médicos tratavam os pacientes com
elixires e vacinas improvisadas que não produziam nenhum efeito, uma espécie de
” sopa ” preparada com sangue e muco dos pacientes . Antes de ser injetada,
filtrava-se essa mistura para eliminar as células maiores, o
resultado era inócuo. Deixava apenas um braço inchado e dolorido. A
” sopa ” era incapaz de interromper a progressão da gripe. Os doentes
continuavam sangrando pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos. O rosto ficava
azulado pela falta de oxigênio, morriam sufocados pelo excesso de líquido nos
pulmões.
Os patologistas enviados pelo Governo atribuíram
inicialmente o expressivo número de mortes a uma espécie de envenenamento
medicamentoso causado pela prescrição elevada de aspirina. Os médicos
receitavam doses de 8 a 31 gramas por dia como parte do tratamento. O excesso
de aspirina aumentava consideravelmente o número de glóbulos brancos no
organismo. Os pulmões eram inundados por tamanha quantidade de líquido que
acabava sufocando os pacientes.
Não era só o excesso de aspirina que causava a
chamada ” tempestade de citonina”, os glóbulos brancos
também multiplicavam-se rapidamente para combater a gripe.
Era uma reação exagerada das defesas do próprio organismo para enfrentar
o vírus. O excesso natural de citonina, acrescido pelas doses
elevadas de aspirina apressava a morte dos doentes.
Doze mil americanos faleceram de gripe em setembro, todos os
acampamentos do exército nos Estados Unidos estavam infectados.
Acreditava-se que o surto talvez tivesse começado na Filadélfia em
outubro, onde havia sido realizado um grande desfile público diante
de 200 mil pessoas. O objetivo da festa era obter fundos para o esforço
de guerra. Nenhum funcionário do serviço de saúde previu o desastre que estava
à caminho.
Três dias depois, os 31 hospitais da cidade estavam lotados
de doentes com graves problemas respiratórios. As pessoas contaminadas chegavam
nos braços de parentes, em automóveis, transportadas em carroças e até em
carrinhos de mão. O mês de outubro foi trágico para os Estados Unidos, o
país registrou cerca de 195 mil mortos na mais severa pandemia da
história da humanidade. Só os que tinham sido infectados pela
primeira vez não foram contaminados quando a gripe voltou de forma
avassaladora. O organismo havia criado anticorpos e resistiu ao novo
ataque do vírus.
Não existe uma estatística segura sobre a quantidade de
mortes causada pela pandemia de 1918, engordada por uma terceira onda,
em fevereiro de 1919, que se dissipou naturalmente em maio do mesmo
ano. Cerca de 500 mil soldados e civis morreram nos Estados Unidos.
Estima-se que cerca de 100 milhões de pessoas tenham sido vitimadas em
todo o mundo pelo vírus da gripe, número seis vezes maior que os 15 milhões de
soldados abatidos em combate durante a 1ª Grande Guerra, no coração de uma
Europa em escombros, que se considerava um exemplo civilização, e se
orgulhava de hospedar os maiores cérebros do planeta.
*Domingos Meirelles é repórter especial da Rede Record
de Televisão e autor de ” As Noites das Grandes Fogueiras–
Uma História da Coluna Prestes ” e ” 1930 : Os Órfãos da Revolução
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