O presidente foi ou não infectado pelo novo coronavírus?
Ninguém saberá. Há um estímulo oficial à descrença constante. Diz-se que não.
Mas quem acredita?
O procedimento bolsonarista já está mapeado: plantar — neste
caso, lá fora (numa TV americana) — a notícia (de que Jair Bolsonaro estaria
contaminado) que se negará em seguida. O que interessa é desmentir; subsidiar a
trombada de versões, a desconfiança generalizada.
Estamos na mais baixa cavidade da depressão política que nos
consome desde 2013 — da qual o bolsonarismo é a mais intensa convulsão. A
degradação é veloz. Mas o fundo do poço é fundo. O presidente comete sucessivos
crimes de responsabilidade. Estica progressivamente — todos os dias — a corda
dos arreganhos autoritários. Sem qualquer resposta institucional de corpo, ousa
— ousará — cada vez mais. Escrevi, na semana passada, que não tardaria até que
tomasse parte numa das manifestações contra os Poderes da República. Aí está.
A ação é coerente se considerarmos a série de imposturas e
irresponsabilidades por meio da qual, nos últimos 30 dias, Bolsonaro liderou
uma implacável blitz autoritária contra o equilíbrio democrático no Brasil. Não
é dinâmica de quem pretenda se submeter aos filtros republicanos por muito
tempo. Há um quê de desespero. O prometido crescimento econômico não veio. O
presidente sabe que frustrará e perderá apoio. Sua única gramática — tanto mais
se acuado— é a da guerra. Ele vai — foi —para a briga de rua. O clima de crise
é a temperatura ideal para medidas de exceção.
Onde estão as provas de que a eleição presidencial de 2018
foi fraudada? Não se pode esquecer desse esboço para golpe. Tampouco se pode
esquecer da reação covarde do Judiciário.
Faz já mais de semana desde que o presidente atentou, com
gravidade sem precedente, contra o sistema eleitoral — auge de um arco
dramático totalitário encenado enquanto a linha evolutiva da Covid-19 já se
traçava como alarmante realidade mundial. Supremo Tribunal Federal e Congresso
Nacional optaram pela omissão. Bolsonaro captou o recado: o próprio convite a
que comparecesse a uma manifestação que, ora, alvejaria Congresso e STF.
Nada exprimirá melhor a mentalidade bolsonarista — o projeto
autocrático de poder — do que a fala do presidente à nação, na quinta-feira
passada. O eixo do pronunciamento jamais foi a gravidade da situação decorrente
do avanço da Covid-19, mas uma mensagem sectária, destinada exclusivamente a
seu povo, acerca dos últimos atos de rua.
O país desafiado por uma pandemia, mas a preocupação de
Bolsonaro era — é — com o fomento aos grupos organizados em que investe como
instrumento de força para emparedar as instituições. Para que não haja dúvida:
o presidente se valeu de cadeia de rádio e TV para difundir uma falsa
desconvocação para os protestos. No domingo, comportando-se como um sociopata,
foi prestigiá-los in loco.
É estratégia arriscada — mas que, por isso mesmo, impõe que
se reflita sobre seus propósitos. A possibilidade de que tenha ido para o
all-in não é remota.
A linguagem reacionária bolsonarista é inconsistente com o
trânsito da normalidade — com os parâmetros da estabilidade democrática — e não
tem recursos para se sustentar em longo prazo senão sob a aposta no golpismo.
Atenção: golpismo. Donde se explicaria o elevado aporte na radicalização chantagista
que caracteriza a tentativa de implantar uma cultura plebiscitária entre nós.
O Palácio do Planalto é uma célula difusora de mentiras —
uma estrutura inconfiável, incapaz de semear o terreno de previsibilidade
necessário a pactos e contratos. O governo não tem palavra. Trai. Dinamita
pontes. Confunde. Age como situação e oposição simultaneamente. Só o firme
propósito autocrático de fomentar a anomia — numa circunstância propícia à
ruptura institucional — justifica que, em meio a tamanha crise, com todos os
elementos de uma tempestade perfeita, o centro do governo se coloque,
deliberadamente, como centro gerador de desinformação e conflito.
É uma atitude para o choque que cansa, que estressa — e que
é avessa a qualquer ambiente de negócios, que fere as mais básicas necessidades
de um chão em crise. Quem investirá aqui? Há um horizonte projetado. A
economia, mal saída da recessão, regredirá. Os tais mercados — que aderiram ao
bolsonarismo sem considerar que reforma liberal é inconsistente com projeto revolucionário
— não tardarão a pular fora. Não tardará a pular fora também o trabalhador cujo
saco cheio financiou o ressentimento bolsonarista, mas que agora percebe que
instabilidade não gera emprego. Um cenário a que Bolsonaro, com menor base
social, responderá com ainda maior tribalismo golpista.
As chances de o Brasil singrar celeremente para a
ingovernabilidade são grandes. Até o impasse absoluto, entretanto, o novo
coronavírus servirá de desculpa para muita incompetência, muito embuste — e
alguns crimes.
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