segunda-feira, 16 de março de 2020

A PESTE

Luiz Roberto Nascimento Silva, O GLOBO
A lembrança da maior epidemia da humanidade surge como memória involuntária. A “Peste Negra”no século XIV começou na Eurásia e invadiu a Europa com as caravanas de comércio do Mar Mediterrâneo e foi transmitida por ratos negros indianos. Estima-se que entre 70 a 200 milhões de pessoas morreram entre 1343 a 1353. O historiador Jacques Le Goff indica que para cada três europeus vivos, um morreu.
A medicina ocidental nesse período era mais rudimentar que a oriental. Em Veneza por exemplo, a peste encontrou um ambiente ideal por ser construída sobre as águas permitindo a propagação com rapidez. Os relatos dos autores transmitem a certeza do fim do mundo. Dramaticamente a cidade hoje é de novo das mais atingidas.
Além dos reflexos sobre a própria preservação da vida, o coranavírus causa estragos em todo ambiente econômico. As bolsas de valores renovam circuit breaks paralisando os negócios. Os juros fecham suas curvas criando rendimentos negativos. As moedas perdem seus parâmetros de referência. A crise na China, importante supridora de peças e componentes do mundo e grande compradora de commodities, interrompe enormes cadeias produtivas. Perdem-se produção, distribuição e consumo.
Impossível também não lembrar de “A Peste”, de Camus, publicado em 1947. Trata-se de um relato preciso de como uma epidemia age sobre uma cidade e sua população. A cidade de Oran, na Argélia, é de repente assolada por uma peste bubônica. Um narrador onisciente descreve a luta do Dr. Bernard Rieux e de outros personagens em auxiliar a população que reage primeiro com desinteresse e descrédito e depois com pavor, desespero e dor. Está tudo lá, vivo e atual.
Os habitantes descobrem que “a primeira coisa que a peste trouxe aos cidadãos foi o exílio… Chegava sempre um momento em que nos dávamos conta que os trens não chegavam”. O exílio e a segregação instalam-se.
A cada dia aumenta a pilha de ratos mortos e também de seres humanos. O desespero aumenta conforme as mortes vão se sucedendo e a separação dos entes queridos se prolonga. A cidade é isolada. Quem está dentro não pode mais sair, quem está fora não pode mais entrar. Paralelamente de outro lado surge solidariedade entre os trabalhadores. O personagem de Rieux deixa seus problemas pessoais para socorrer os moribundos. Num dos diálogos há uma frase que serve de advertência para todos nós. Camus lamenta que “a única maneira de juntar as pessoas ainda é mandar-lhes a peste”.
Os voos entre a Europa e os Estados Unidos estão suspensos. A Itália está sitiada; ninguém pode entrar ou sair como em Oran. Os grandes espetáculos artísticos e esportivos estão suspensos. Navios ancorados em quarentena nos portos. Os setores de serviços como restaurantes, turismo e entretenimento estão devastados.
Num mundo cada vez mais protecionista preocupado com suas fronteiras, chega a ser irônico que o inimigo não venha de fora, mas do próprio país. Não é estrangeiro que ao entrar no país traz a doença, mas o próprio cidadão. Não há muro que impeça essa invasão bárbara. O nacionalismo mostra-se impotente para conter e controlar essa nova forma de desorganização da atividade econômica.
Os países precisam aproximar-se da ciência e da informação para enfrentar o coronavírus. Seria ótimo que o mundo pudesse, além de lutar com a pandemia, buscar formas mais civilizadas de convivência que já existiram em passado recente. Isso poderia ser uma consequência benéfica do que estamos passando. Já que estamos conectados em tempo real e que, além do comércio e da comunicação, as doenças também possuem velocidade digital poderíamos refazer a frágil fronteira entre as nações.
*Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura no governo Itamar Franco
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