Os países mais
desenvolvidos do mundo adotam, com algumas diferenças entre eles, o Orçamento
impositivo. Ou seja, o Executivo é obrigado a executar as programações
orçamentárias que foram aprovadas pelo Parlamento. No Brasil, infelizmente, o
Congresso Nacional está adotando uma variante que é impossível defender: o
Orçamento com proprietários individuais.
Até há pouco tempo, o entendimento predominante no Brasil
era de um Orçamento apenas autorizativo, ou seja, que o Executivo não tinha a
obrigação de executá-lo. Não podia era gastar mais do que estava autorizado.
Depois de promulgada a Constituição de 1988, os parlamentares começaram a
pressionar o Executivo para abrir um espaço dentro do Orçamento da União para
as suas emendas.
Adotaram uma prática deletéria, que foi a de superestimar as
receitas orçamentárias para arrumar recursos para financiar suas emendas. A
prática tornou o Orçamento da União uma peça de ficção, pois, além de o
Executivo não ter a obrigação de executá-lo, as receitas não tinham relação com
a realidade.
A demanda dos parlamentares sempre foi por recursos para
construir pequenas obras em suas bases eleitorais. Todos os governos,
independentemente de suas ideologias, aceitaram o jogo, pois condicionavam a
liberação dos recursos das emendas às votações dos parlamentares favoráveis aos
projetos que lhes interessavam. Esse mecanismo sustentou o chamado
“presidencialismo de coalizão”, ao longo das últimas décadas.
No fim da década de 1990, no entanto, teve início um
movimento de rebeldia contra essa situação e vários parlamentares começaram a
lutar pela obrigatoriedade de execução de todas programações orçamentárias. O
então senador Iris Resende, do PMDB goiano, apresentou a PEC 77/1999, nesse sentido.
O então poderoso senador Antônio Carlos Magalhães, do PFL baiano, empunhou a
mesma bandeira.
Em 2015, as resistências do governo foram quebradas e o
Congresso aprovou a emenda constitucional 86, que tornou obrigatória a execução
das emendas individuais até o limite de 1,2% da receita corrente líquida (RCL)
da União, sendo que metade do percentual seria destinado a ações e serviços
públicos de saúde.
Há uma particularidade na execução das emendas individuais
de parlamentares ao Orçamento, no caso do Brasil. Aqui, a emenda é,
normalmente, genérica, ou seja, ela acresce recursos a uma programação
existente ou cria outra. Durante a execução do Orçamento, no entanto, cabe ao
parlamentar, autor da emenda, indicar o CNPJ do beneficiário. Ou seja, é ele
quem diz em que município o dinheiro será aplicado. Com isso, ele se transforma
em proprietário de uma parte do Orçamento.
Em junho do ano passado, o Congresso aprovou a emenda
constitucional 100, que tornou de execução obrigatória as emendas de bancadas
estaduais ao Orçamento, até o limite de 1% da RCL. Com isso, os integrantes das
bancadas estaduais também são proprietários de uma parte do Orçamento.
A EC 100 determinou também que “a administração tem o dever
de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas
necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à
sociedade”. Desta forma, todo o Orçamento se tornou de execução obrigatória.
Em dezembro do ano passado, o Congresso aprovou ainda a
emenda constitucional 105, que criou a “transferência especial”. Por meio de
suas emendas, os parlamentares podem transferir recursos diretamente ao caixa
do Estados ou do município que escolher, sem necessidade de assinatura de
convênio ou instrumento congênere. Os recursos serão usados pelos Executivos
estaduais e municipais da forma que melhor lhes aprouver, sem que haja qualquer
fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU). Neste caso, os parlamentares
se tornaram proprietários de parte dos recursos do Orçamento.
Para completar, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO),
válida para 2020, tornou obrigatória a execução das emendas de relator-geral e
de Comissões do Senado e da Câmara. Depois de aprovado o Orçamento,
descobriu-se que o relator-geral tinha feito emendas no montante de R$ 30
bilhões. Ele teria, portanto, o direito de indicar os CNPJ dos beneficiários
dessa montanha de recursos. Teria também o direito de definir a prioridade de
execução dessas programações.
Quando o Orçamento deste ano foi aprovado, as emendas parlamentares
impositivas somavam R$ 48,5 bilhões. Este foi o espaço de execução orçamentária
que foi subtraído do Executivo. Um veto do presidente Jair Bolsonaro à LDO fez
o Executivo recuperar a gestão de R$ 30,8 bilhões (inclui as emendas de
comissões). Mas, agora, o Congresso discute o PLN 4/2020, que, se aprovado,
dará ao relator-geral o poder de direcionar R$ 16,3 bilhões do Orçamento.
É preciso observar que as emendas parlamentares não passam
por uma discussão técnica na Comissão de Orçamento do Congresso, não precisam
provar que são compatíveis com as políticas públicas setoriais ou que levam em
conta critérios de distribuição que beneficiem os mais necessitados ou as áreas
mais carentes.
Ao propor o veto à LDO, o ministro da Economia, Paulo
Guedes, disse que o dispositivo que permite ao parlamentar indicar o
beneficiário dos recursos “investe contra o princípio da impessoalidade que
orienta a administração pública, ao fomentar cunho personalístico nas
indicações e priorizações das programações decorrentes de emendas”. Dito de uma
forma mais direta, o dispositivo que está inscrito no PLN 4 é inconstitucional
e deveria ser objeto de ação no Supremo Tribunal Federal (STF), se for
aprovado. Esta é a saída correta, e não ir às ruas.
Vale lembrar o exemplo do Supremo Tribunal das Filipinas,
que, em 2013, considerou inconstitucionais todas as disposições legais que
autorizavam os parlamentares – individualmente ou coletivamente – a intervir,
assumir ou participar de qualquer um dos vários estágios da execução do
Orçamento, pois essa é uma atribuição do Executivo.
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