“Quero agradecer em
nome da saúde do Brasil”. Foi com essas oito palavras que Luiz Henrique
Mandetta transformou a puxada de tapete do presidente da República numa escada.
Na guerra de sobrevivência política em que se transformou o combate à pandemia,
o ministro da Saúde convocou o “partido sanitarista”, comunidade de
profissionais da saúde que, 50 anos atrás, se uniu para montar o SUS e hoje o
mantém acima das rixas partidárias. Apesar dos agrados sucessivos ao
presidente, o ministro o colocou na condição de quem presta serviços a este
partido.
Em contrapartida, o ministro prestou-se ao papel de médico
avalista de uma encenação destinada a mostrar que o presidente não está
isolado. Com máscaras sob a coreografia de tira-e-bota-deixa-ficar e sentados a
centímetros de distâncias uns dos outros, parecia um trupe de sobreviventes
depois de anunciada a segunda baixa, do ministro Bento Albuquerque (Minas e
Energia), um dia depois de noticiado contágio de Augusto Heleno (Gabinete de
Segurança Institucional).
O presidente convocou a encenação dois dias depois de
Mandetta reunir-se com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal
Federal, numa tentativa de mostrar que não é a criança irresponsável que desce
a rampa para brincar com manifestantes enquanto os adultos adotam medidas para
evitar que o país sucumba à pandemia.
O capitão montou o palco horas antes do panelaço contra seu
mandato. Estava disposto a ofuscar Mandetta e se mostrar no comando desta nau
doente e desgovernada. Só que não. Bolsonaro abriu a entrevista justificando-se
pelos cumprimentos aos manifestantes do domingo dizendo que, em todo o Brasil,
não excederam 1 milhão de pessoas – “equivalente a 20% da população que usa o
transporte coletivo em São Paulo diariamente”. Esqueceu de explicar que se
ainda há muitos se expondo ao risco de entrar no metrô é porque não têm
alternativa. Disse saber dos riscos que corria mas havia optado por descer a
rampa porque, pela “índole militar”, ele “nunca abandonaria o povo brasileiro”.
Disposto a provar que não convocou manifestações a seu
favor, na contramão dos fatos, fez a propaganda de outra, o panelaço a seu
favor. Uma tentativa de se apropriar de uma expressão que, até aqui, serviu
para demonstrar rechaço político, a começar pelo impeachment da ex-presidente
Dilma Rousseff, de onde partiu em sua marcha para Brasília. Errático, entre as
estocadas na imprensa e a busca de uma autoridade perdida, Bolsonaro mostrou-se
incapaz de desmontar a imagem de presidente que fez pouco caso da saúde dos
brasileiros com a ideia de que o coronavírus não passa de fantasia ou guerra de
panelas.
Coube a Mandetta cruzar os braços e olhar para o outro lado
quando o almirante Antonio Barra Torres, diretor da Agência de Vigilância
Sanitária, que falou imediatamente depois do ministro da Economia, Paulo
Guedes, começou a enumerar as portarias que havia assinado. Em seguida, vieram
os ministros da Justiça (Sergio Moro), da Defesa (Fernando Azevedo), da
Infraestrutura (Tarcísio Freitas), do Desenvolvimento Regional (Rogério
Marinho) e da Casa Civil (Braga Netto) para só então o titular da Saúde ter
vez.
Mandetta, em compensação, falou mais do que todos os seus
anteriores juntos. Sentiu-se tão seguro na abertura que derrapou na respostas
aos jornalistas. Avançou destemido, porém, contra o escanteio para o qual o
presidente tentou jogá-lo porque parece convencido de que tomou o lugar de
Guedes como âncora deste governo. O ministro da Economia agiu como um condenado
a rasgar todos os dogmas do estado mínimo pelos quais sempre rezou ao anunciar
o socorro aos ‘uberizados’.
O ministro da Saúde entrou na guerra com as armas da
propaganda: o SUS está em todas as cidades, quilombos e aldeias indígenas do
país e “estará ao lado dos 215 milhões de brasileiros”. Foi destemido na
comparação com outros países que, na sua contabilidade, começaram a perder
pacientes com 80 casos, enquanto o Brasil registrou o primeiro óbito quando já
contava 290 doentes, e propagou, como quem é capaz de encher um balde para
apagar um incêndio, o lançamento de serviços de telemedicina para a orientação
de pacientes à distância.
Não é o gerente do comitê de crise, hoje nas mãos do
ministro da Casa Civil, mas agiu como tal ao recomendar cautela nas decisões
dos Estados de fechar estradas, que poderiam vir a prejudicar a logística no
trânsito de alimentos e medicamentos. E, finalmente, tratou como parte do campo
de batalha o stress, a notícia enviesada, as opiniões de especialistas e até a
ansiedade daqueles que não percebem que o momento é de calma. Só faltou dizer
que faz parte lidar com um presidente como Bolsonaro, mas limitou-se a dizer
que ele é o grande timoneiro. A saudação, àquela altura, quando o presidente
havia se ocupado a falar mais da imprensa do que do futuro do Brasil, mostrava
que o menino levado continuava no quintal enquanto os adultos se ocupavam com
as decisões.
Mandetta retribuiu a menção feita por Fernando Azevedo e
Silva. O discurso do ministro da Defesa – “Isso é uma guerra contra um inimigo
invisível, feroz e dedicado” – coincidiu mais com o tom do titular da Saúde do
que com aquele usado pelo comandante-em-chefe.
Aparentemente deslumbrado com seu próprio desempenho, o ministro
da Saúde derrapou ao descredenciar a recomendação da Organização Mundial de
Saúde de que todos sejam testados.
Mencionou o que imaginava ser a população da Coreia do Sul –
“Uma coisa é vacinar 4 milhões de pessoas” – país que tem 51 milhões de habitantes,
para dizer que não dava para fazer o mesmo num país de 215 milhões. Também se
atrapalhou ao justificar o atrapalhado uso de máscaras.
O panelaço que se seguiu mostrou que o esforço de Bolsonaro
não convenceu. Aquele convocado pelo próprio presidente não teve volume de
desagravo. O placar das redes sociais dava 7 x 1, mas no balanço do dia parecia
mais apropriado falar em 529 infectados e quatro mortes. Isolado na República,
ontem Bolsonaro se mostrou tolhido em seu próprio governo. O vírus ainda não o
derrubou, mas já feriu de morte o bolsonarismo.
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