Não faltaram tiros de advertência antes de o Congresso
detonar a pauta-bomba contra o governo Bolsonaro. A derrubada do veto
presidencial ao projeto que amplia a base populacional a receber o Benefício de
Prestação Continuada (BPC) está longe de ser um ato inaugural.
E nem teria como ser, afinal se tratava de uma tréplica do
Congresso, depois do presidente ter decidido barrar a proposta votada pela
Câmara e Senado.
O projeto que aumentou o limite de renda per capita para
receber o benefício de 25% do salário para a metade era bastante antigo, do
ex-senador catarinense Casildo Maldaner. Tramitou no Legislativo por nada menos
que 23 anos. Passou no Senado no fim de novembro, sem que o governo esboçasse
reação. Bolsonaro vetou a proposta no dia 20 de dezembro.
A relação entre Executivo e Legislativo no Brasil é péssima
desde o início do governo, mas a crise envolvendo o Orçamento impositivo –
estopim para a derrubada do veto – estava delineada com perfeição desde o fim
de 2019.
Ainda falta no governo Bolsonaro, onde pululam militares no
Palácio do Planalto, uma figura como Golbery do Couto e Silva, o ministro da
Casa Civil de Geisel e do início do governo Figueiredo. A ele é atribuída uma
frase, que teria sido dita a líderes da oposição:
“Segurem seus radicais que nós seguramos os nossos.”
Todo este ambiente de impasse fez diminuir o otimismo em
relação à manutenção de ambiente para aprovar no Congresso a agenda
pró-mercado, como vinha sendo feito. Chegamos aos idos de março, com as
eleições se aproximando e o coronavírus tracionando a escalada do pânico.
O cronograma de 15 semanas que seriam as disponíveis este
ano para o ministro da Economia, Paulo Guedes, para aprovar sua agenda este ano
– conforme o próprio ministro disse em encontro com parlamentares – corre,
célere, sem que fique claro sequer quem é o interlocutor do Planalto com o
Legislativo. Quem era no começo do governo? Onyx Lorenzoni? Bebianno? Santos
Cruz? e quem é agora? Braga Netto? Ramos? Jorge Oliveira? Rogério Marinho?
“O governo não tem o diálogo necessário com o Congresso”,
constatou há alguns dias o deputado Vinicius Poit (Novo-SP), que está a uma
distância abissal da oposição. “Houve uma destruição da confiança entre o
Executivo e o Legislativo”, disse o cientista político, Carlos Melo, do Insper.
Para Melo, que conversou com a coluna antes de ser revelado
que o próprio presidente aguarda o resultado do teste sobre o coronavírus, a
entrada em cena da pandemia no cenário político pode ter um desdobramento
ironicamente positivo para Bolsonaro, válido obviamente se ele não tiver
problemas maiores de saúde.
A crise provocada pela covid-19 pode se tornar um bom álibi
para justificar um resultado econômico ruim e um saldo político pobre no ano
atual. “A covid-19 pode se tornar um bodex-2020”, ironizou Melo, fazendo um
gracejo com a eventual sigla que teria as duas primeiras sílabas da expressão
“bode expiatório”.
Em termos concretos, isto significaria que uma questão
conjuntural ajudaria a mascarar os sintomas de um problema real, que é a
deficiência de articulação entre Bolsonaro e o Congresso.
Outro efeito, não mencionado por Melo, é que a pandemia
produza um cenário mais positivo para aplainar a relação entre Legislativo e
Executivo. A reunião de anteontem entre ministros e lideranças parlamentares
para falar sobre o coronavírus mostra que esta é uma possibilidade concreta. A
atitude de Bolsonaro de pedir que as manifestações sejam suspensas ou adiadas a
reforça.
Ao tirar o dedo do gatilho em relação aos atos convocados
para o dia 15, o presidente dá o primeiro passo para se tornar o Golbery de si
mesmo.
Ele segurou seus radicais, os que pedem o fechamento do
Congresso, do Supremo, dos partidos oposicionistas, da imprensa e sabe-se lá
mais o quê. É possível que o Legislativo também segure os seus, aqueles que
impulsionaram a imposição de um parlamentarismo torto, engessando o Orçamento.
Como não está claro se Bolsonaro desestimulou a manifestação
do dia 15 porque quer apostar no diálogo ou por motivo de força maior, não dá
para cravar que esta visão benigna de que o coronavírus produzirá uma espécie
de união nacional irá prevalecer.
O pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV do
presidente na noite de ontem não permite se chegar a uma conclusão. Ao mesmo
tempo em que afirmou que “o momento é de união, serenidade e bom senso”,
ressalvou que “o Brasil mudou” e que “as motivações da vontade popular
continuam vivas e inabaladas”. Fica a porta entreaberta para ser batida de
forma estrepitosa ou cruzada em sinal de boa vontade.
Caberá ao presidente esclarecer o mistério, nos próximos
dias. Para citar outra frase atribuída a Golbery, no jogo de xadrez do poder, o
governo joga com as brancas.
A longo prazo, o crescimento econômico fraco em 2020 cobrará
seu preço eleitoral. Bolsonaro perderá força, sem que se divise no horizonte
ninguém que possa recolher as esperanças dos desiludidos. A palidez da economia
torna menos nítido o panorama de 2022.
*César Felício é editor de Política
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