Num gesto espontâneo, cidadãos foram à varanda de seus
apartamentos na noite de terça-feira em São Paulo, no Rio de Janeiro, em
Brasília e outras cidades para protestar contra o presidente Jair Bolsonaro.
São brasileiros cansados de um presidente cujo único talento
parece ser a capacidade de ampliar as crises que deveria administrar e conter.
O valor simbólico dessa manifestação, independentemente de sua dimensão, é
muito maior do que o ato golpista de domingo passado, em que grupos
bolsonaristas, insuflados pelo presidente, foram às ruas em algumas cidades
para pedir o fechamento do Congresso e a prisão de políticos e de ministros do
Supremo Tribunal Federal.
No domingo, Bolsonaro festejou o que chamou de manifestação
“espontânea” de seus apoiadores, e disse que lá estava o “povo”. Esse devaneio
populista começou a ser desfeito na noite de anteontem, quando o presidente
experimentou a exasperação sincera de quem está cansado de suas patranhas e
resolveu demonstrar publicamente essa insatisfação.
Além disso, Bolsonaro vem perdendo popularidade de forma
acelerada nas redes sociais, segundo a percepção do próprio entorno do
presidente, como informou o Estado. Como se sabe, a única coisa que
Bolsonaro leva a sério são os cliques e as interações do mundo virtual, que ele
toma por real. Ante a perspectiva de perder o controle no ambiente em que até
agora navegava soberano – por ter menosprezado uma epidemia letal e que está
causando imensos transtornos e incertezas para todos os brasileiros –,
Bolsonaro tentou parecer mais cordato. “Superar esse desafio depende de cada um
de nós”, escreveu no Twitter, pregando “serenidade” e pedindo que “população e
governo, junto com os demais Poderes”, somem “esforços necessários para
proteger nosso povo”. Vindo de quem até horas antes se dizia vítima de um
“golpe”, denunciava a “disputa de poder” por parte “desses caras”, em
referência aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi
Alcolumbre, e criticava as medidas sensatas dos governadores para conter a
pandemia, foi um avanço. Resta saber até onde irá a “moderação” de Bolsonaro.
Na mesma frase em que pregava a união de todos para
enfrentar a crise, o presidente disse que “o caos só interessa aos que querem o
pior para o Brasil”. Ou seja, mesmo quando precisa demonstrar que governa para
todos e no interesse coletivo, continua a valer-se de suas fantasias
conspirativas para propagar sua mensagem divisionista e de ódio, com a qual
construiu sua carreira política e chegou à Presidência. O lobo pode até perder
o pelo, mas jamais perderá o vício.
Se estivesse realmente empenhado em se emendar e agir como
presidente da República, e não como chefe de facção, Bolsonaro teria condenado
categoricamente a convocação, pelas redes bolsonaristas, de uma nova
manifestação governista, marcada para 31 de março, aniversário do golpe de
1964, explicitamente destinada a defender um novo golpe. Até agora não o fez.
Pior: pelo Twitter, informou que ontem haveria um “panelaço” a favor de seu governo,
como resposta aos protestos daqueles que, presos em suas casas por causa da
quarentena imposta pela pandemia e com os nervos à flor da pele, não suportam
mais um governante que tudo faz para politizar a epidemia, agravando uma
situação que já é crítica.
Assim, de nada vale o mise-en-scène patético de um
presidente que agora aparece com seus ministros, todos com máscaras, para
tentar mostrar serviço, pois a presença de Bolsonaro já foi dispensada por
aqueles que estão à frente dos esforços contra a pandemia, inclusive no próprio
governo. Hoje, está claro que Bolsonaro não é um presidente, mas um estorvo.
Não à toa, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que tem feito até aqui
um bom trabalho, corre o risco de perder o emprego para o diretor da Anvisa,
Antonio Barra Torres, um médico bolsonarista que, para agradar ao chefe, não
viu nenhum risco de contaminação da covid-19 numa manifestação governista da
qual participou o presidente.
Até aqui, Bolsonaro viveu de inventar crises. Na primeira
crise real de seu governo, mostrou do que é feito.
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