“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem
defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as
demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos” – Winston Churchill,
discurso na Câmara dos Comuns em 1947.
Quando pronunciou a frase que se tornaria o mantra da
democracia através dos tempos, Churchill era um deputado que acabara de experimentar
as agruras desse sistema político, baseado no voto popular. Dois anos antes, a
2.ª Guerra Mundial ainda nem havia acabado, mas o gigante que conduzira a
Inglaterra na vitória dos Aliados contra o nazi-fascismo foi derrotado nas
eleições e deixou o cargo de primeiro-ministro. Muitos se revoltaram contra o
que entenderam ingratidão dos ingleses, porém o estadista não se abalou: “Eles
têm o direito perfeito de nos enxotar. Isso é democracia. É por isso que
estamos lutando”.
Noutras circunstâncias, quando os inimigos da democracia
insistem em atacá-la, os democratas é que devemos arrogar não só o direito, mas
o dever de defendê-la. Nossos tempos talvez sejam, desde a grande corrente
libertária forjada pelo pós-guerra dos anos 1940, os mais adversos a esse
sistema de governo em que o povo detém, pelo voto igualitário, o controle de
seu destino político. A democracia representativa, em especial, é submetida a
um descrédito que no fundo alveja a política como instrumental de administração
e solução institucional dos conflitos na sociedade. A todo instante se escreve
o epitáfio da representação política e são, de fato, visíveis os sinais de
insatisfação dos eleitores com seus representantes. A pesquisa Barômetro das
Américas, realizada de dois em dois anos pela Universidade Vanderbilt, dos
Estados Unidos, com apoio no Brasil da Fundação Getúlio Vargas, revelou em sua
última rodada, em 2019, que 58% dos brasileiros não estão satisfeitos com o
funcionamento da democracia no País, mas, dando razão a Churchill, um porcentual
maior, 60%, acha que ela ainda é a melhor forma de governo. Um hiato
autoritário imposto por um golpe antidemocrático conta com a simpatia de 35%
dos brasileiros, mas a maioria de 65% rejeita a ideia.
Os dados permitem a ilação de que, por maior que seja o
desalento com a democracia, é majoritária a preferência nacional por mantê-la
como a melhor forma de governo. Trata-se, portanto, de aperfeiçoá-la,
extirpar-lhe os defeitos, que mais se devem aos que estão no topo da
representação do que às vicissitudes dos representados. Constitui truísmo
observar que as instituições democráticas são maiores do que os homens que as
conduzem.
Fundamento básico da democracia é uma Constituição que
avalize a isonomia republicana, assim como a clássica separação e independência
harmônica dos Poderes, os quais, desempenhando papéis específicos, atuam como
contrapesos recíprocos. Como no preceito bíblico, a democracia dá a César e a
Deus o quinhão que lhes compete. Daí ser inadmissível que integrantes de um dos
três Poderes do Estado, extrapolando suas funções discricionárias, embarque na
temeridade de limitar a atuação de outro. Quando disputam a preferência do
eleitor, os membros do Parlamento e do Executivo podem até apresentar programas
eleitorais contendo tais limitações, mas para aplicá-las, já investidos no
cargo, devem observar a liturgia constitucional. E na maioria das vezes, como
regra do processo democrático, carecem do concurso do Poder em questão para
alcançar seus objetivos reformadores. O que não podem é apelar para as “vozes
das ruas” com o fim de se fortalecer e intimidar o Poder que, em avaliação
autoritária, lhe nega um quinhão maior do que aquele que lhe está atribuído,
invocando a fúria dos 35% que apoiam o hiato autoritário.
Divergências de governança entre os Poderes são naturais,
mas cabe ao Executivo, embora igualmente eleito pelo povo, reconhecer que o
Legislativo é o poder popular por excelência, porquanto diverso, plural,
reunião eclética e sincrética das correntes que pulsam na sociedade, formando
um mosaico que a contradição democrática tende a transformar em síntese da
vontade nacional. Todo ato que emana do Parlamento, obviamente chancelado pela
maioria, é um ato federativo que as minorias são obrigadas a respeitar – e o
axioma vale para os demais Poderes, cabendo apenas ao Judiciário escrutinar a
conformidade constitucional das decisões.
Quando o Executivo exorta seus acólitos em busca de apoio
não propriamente à sua linha política, mas para intimidar os demais Poderes,
expõe de forma condenável sua incapacidade de governar segundo a ordem
democrática. Tal procedimento é típico de governos que não lograram cumprir
promessas de campanha, frustraram eleitores e deram razão à oposição, buscando
responsabilizar um “inimigo externo” por seu fracasso. Se a regra era culpar a
imprensa, agora agitam as redes sociais. No andar dessa carruagem, a convocação
do presidente da República para que seus correligionários venham às ruas, em
manifestações contrárias à independência e autonomia do Congresso e do Supremo
Tribunal Federal, constitui um atentado à democracia que faria Churchill
novamente ir à luta, como o fez contra o Terceiro Reich.
*Criminalista, ex-presidente da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), foi deputado federal (PDT-SP).
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