"Duas coisas difíceis hoje em dia sobre o novo
coronavírus: escapar de fake news e encontrar bom senso”, escreveu um
leitor na quinta-feira (12), mesmo dia em que um áudio compartilhado por
aplicativos de mensagens desenhava um cenário apreensivo para a disseminação do
novo vírus no país.
Nele, o médico cardiologista Fábio Jatene, do Instituto do
Coração (InCor) do Hospital das Clínicas, descrevia previsões de colegas sobre
um grande aumento do número de casos da doença nos próximos meses, com menos
leitos de UTI do que o necessário para acomodar os doentes.
Um dia depois de a OMS (Organização Mundial da Saúde)
declarar que, por ter atingido escala mundial, vivemos uma pandemia do vírus,
imaginei que o áudio pudesse ser falso, sobretudo pela confusão que se instalou
nas redes sociais em torno do tema e pela predisposição das pessoas em repassar
qualquer coisa sem checar.
Era verdadeiro,
como indicado pelo próprio médico aos jornais, entre os quais a Folha.
Sabe-se lá por quais motivos, um site com aparência muito
similar à das agências de checagem decidiu classificar o áudio como “fake”.
O site ainda inseria um elemento conspiratório na falsa
checagem ao dizer que, “mesmo que o áudio fosse real, o hospital não
confirmaria”, e encerrava o texto lavando as próprias mãos (“quem tiver
curiosidade e comparar a voz do áudio com esta entrevista poderá tirar suas
próprias conclusões”).
O áudio verdadeiro bombou nos aplicativos de mensagens, mas
teve baixa propagação nas redes sociais—foram 1.104 posts no Twitter. Olhando o
Google, porém, ele alcançou 24 dos 26 estados e Distrito Federal, segundo a
empresa de análise de dados Bites.
Quanto ao site que classificava o conteúdo como falso, saiu
do ar um tempo depois—não sem antes ter deixado um rastro de desinformação.
Tentar disseminar conteúdo
falso como se verdadeiro fosse é algo com que, infelizmente, nos
acostumamos a lidar. Já cravar como mentira o que é verdadeiro não deixa de ser
uma espécie de inovação.
O novo é que o verdadeiro se tornou falso.
Outra novidade tem sido a quantidade avassaladora de
arquivos falsos em PDF (um formato para apresentar documentos eletrônicos),
enviados por aplicativos de mensagens.
Como se trata de uma doença, a versão em PDF confere ao
conteúdo falso um ar de estudo. Em tempos de coronavírus, são as fake news
substituindo o formato jornalístico pelo formato científico: “fake science”,
digamos assim.
Nesse campo, chamou a atenção outro conteúdo, este
compartilhado sobretudo pela esquerda.
Segundo a Bites, a (des)informação
de que Cuba teria fabricado uma vacina contra a doença produziu, só na
quinta-feira, 69.573 tuítes, mesmo sem merecer uma linha no Granma, o jornal
cubano.
O que não é novo é a cobertura jornalística feita sobre as
grandes epidemias, sempre sujeita a resvalar no sensacionalismo.
Nesse caso, o dever de informar estabelece um estado de
tensão permanente com o risco de gerar pânico, num equilíbrio difícil, mas que
não deve ser menosprezado pelos produtores de notícia.
Segundo especialistas, a abordagem das crises sanitárias
requer prudência porque envolve prescrição de
comportamentos, destinação
de recursos e até mesmo poder de polícia, como a restrição
de circulação de pessoas.
O pânico é alimentado sobretudo quando se compromete a
condição do Ministério
da Saúde como líder da resposta ao vírus (em abordagens como “a China
fez certo, o Brasil errado”), com a difusão do alarmismo (“o SUS não vai dar
conta, é melhor pensar em outra coisa”) ou com previsões matemáticas feitas sem
observação crítica ou ponderação.
E, num cenário de descontrole, fica ainda mais fácil
proliferar as fake news.
Alguns dias depois de o presidente Jair Bolsonaro tê-lo
descrito como “uma
fantasia”, o coronavírus tem chacoalhado o país. É grande a busca por
informação, como mostrava o site da Folha na mesma
quinta-feira à tarde.
Das dez
reportagens mais lidas, nove tratavam de coronavírus. Até a matéria sobre
o Big
Brother Brasil dizia que o programa não teria plateia devido à Covid
19.
Em momentos como este, o senso crítico é a arma para lidar
com qualquer conteúdo, seja ele falso ou verdadeiro.
As redes sociais romperam a necessidade de qualquer
legitimidade para que algo alcance repercussão.
Talvez a lição que o episódio nos dê seja que essa falta de
legitimidade em questões de saúde pública pode ter um custo tão alto quanto a
vida.
E que a verdade, mais do que nunca, não pode ser tratada
como uma opção. Para o pesadelo dos terraplanistas, precisamos da ciência para
salvar vidas, inclusive as deles.
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