Pelo menos na imprensa e nas redes sociais a que tenho
acesso, pouco ouço falar da origem do coronavírus, um assunto que devia nos
interessar. Primeiro, porque conhecer o que não se conhecia é um princípio
natural da cultura. Depois, porque não se pode enfrentar um inimigo dessa
importância, sem saber de onde ele veio. Sobretudo se isso diz alguma coisa a
respeito de sua força ou de sua estratégia.
Dizer que esse é um “vírus chinês” é um ridículo idiota, parece
uma declaração de guerra à Alemanha por causa do 7 a 1. O vírus surgiu primeiro
na China, mas a responsabilidade por sua existência não é só da China. Com seu
gosto em nos causar mal e seu poder destruidor, o vírus é o resultado de nossos
maus-tratos à Natureza, entendendo por Natureza tudo aquilo que, no nosso
planeta, não seja humano.
Como outras pestes que assolaram o mundo, desde a invenção
do ser humano, o vírus letal é uma arma especial da Natureza, que a usa quando
erramos demais, em relação a seu bem-estar. Em 1520, quando um dos primeiros
exploradores espanhóis chegou ao México, levando com ele a varíola que os
locais não conheciam, a maior parte dos habitantes da América Central caiu
vítima da doença. E não havia, ali, aglomerações humanas, aviões
intercontinentais, cruzeiros marítimos, essas coisas nas quais a gente, em
geral, costuma botar a culpa.
Só no século passado, crises epidêmicas, provocadas por
vírus, mataram mais do que as bárbaras guerras mundiais dos anos 1900. Em 1918,
no final da Primeira Grande Guerra, responsável por 16 milhões de mortos, a
Gripe Espanhola fez mais de 50 milhões de vítimas. E o Reino Unido, potência
mundial na época, perdeu, com a Gripe que não era gripe, 17% de seu PIB. Entre
outras pragas, a Gripe Asiática em 1956, a Aids em 1981, o Ebola Africano em
2013 e a zika em 2015 (que fez o Brasil perder US$ 16 bilhões) assolaram nossas
vidas e as vidas dos que amamos.
Podemos usar, para falar dessas epidemias, o que escreveu o
combatente alemão Rudolf Höss sobre a Guerra de 18: “Na verdade, não havia um
front propriamente dito. O inimigo estava em toda parte. E onde quer que
houvesse um confronto, seguia-se um massacre que se estendia até a destruição
completa. (…) Àquela época, eu ainda era capaz de rezar, e era o que eu fazia.”
É preciso descobrir em que estamos errando tanto em nossas
relações com a Natureza. Precisamos ouvir ecologistas, filósofos, cientistas em
geral, para evitar nossos assaltos à natureza da Natureza, que acabam por fazer
dela uma inimiga feroz. Não se pode tratar esse assunto com palpites e
mentiras, como fazem alguns de nossos líderes. A ciência anda sendo
menosprezada no mundo e, sobretudo no Brasil, temos preferido lances e toques,
criacionismos e terraplanismos, ideias de políticos que só pensam na ilusão dos
outros e no sossego deles.
Os novos conhecimentos podem fazer dessa crise uma aurora
nova. O valor da verdade, da ciência e das novas tecnologias podem nos proteger
contra as farsas ideológicas que nos atrapalham tanto. A humanidade está se
comunicando como nunca se comunicou antes, temos que usar isso em benefício da
fraternidade, e não da guerra. Se sairmos dessa crise do coronavírus
convenientemente, se usarmos o que temos e sabemos para colaborar uns com os
outros, estaremos renovando a hipótese fraterna da humanidade. Uma humanidade
melhor e mais solidária, que venceu junta a guerra contra o vírus.
A teoria de Renata, minha mulher, é que esse é um vírus
antineoliberal. Um vírus que veio nos lembrar da democracia social que nós já
tínhamos esquecido e que foi a melhor contribuição do Ocidente a uma política
de solidariedade e fraternidade universais, desde o presidente Roosevelt e de
Lord Keynes. Com ela, havíamos aprendido que a vida humana é mais importante
que o ajuste fiscal.
Precisamos agora descarbonizar o planeta, acabar de uma vez
com os combustíveis fósseis, construir um futuro de trans-humanismo e humor
universal, onde a humanidade possa recomeçar com mais esperança no amanhã de
cada um. Os “intelectuais necessitados” das escolas de samba, formadas em
comunidades pobres, já entenderam tudo isso, mesmo que nem sempre o formulem
com clareza e exatidão. No último carnaval, agremiações como Grande Rio,
Viradouro e Mangueira saíram mostrando que estão preocupadas com a construção desse
novo mundo. Um mundo sem vírus ou um mundo pós-vírus. No final de fevereiro,
li, na seção de cartas do GLOBO, uma mensagem do leitor Roberto Ornellas, que
afirmava essa preciosidade: “Mais vale Jesus na Mangueira do que na goiabeira”.
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