Fui apresentado à obra de Rubem Fonseca ali pelo início dos
anos 1980. Era novinho, portanto, rebelde, como devem ser todos os jovens. O
país vivia a distensão política que levaria ao fim do regime militar. O acordo
entre as elites e as forças políticas proporcionou uma transição sem
derramamento de sangue, naquele passado ainda recente. A ditadura sobrevivia
apenas através de espasmos de gorilas nos porões.
Nesse ambiente é que li pela primeira vez O Cobrador, uma
das crônicas que dá nome ao livro do escritor. Foi uma porrada a seco no
estômago. Fiquei atordoado sem entender como, mesmo na ficção, alguém podia
carregar tanto ódio. O Cobrador saía às ruas em busca de restituição de tudo
que acreditava que a vida lhe tinha negado.
Estamos agora em 1995 e fui trabalhar em Angola … O rico e
miserável país africano enfrentava a mais longeva das guerras civis da
humanidade. Sem despertar o interesse das grandes plateias ou da imprensa.
Havia estourado a guerra nos Bálcãs na Europa; não tinha espaço para a morte de
negros falando português em solo africano. A longa guerra estava exaurindo
tudo, até os dois exércitos – o Movimento Popular de Angola, MPLA, e a União
Nacional Para a Libertação Total de Angola, Unita.
Não vou contar a história nem a gênese dessa guerra.
Lembrarei apenas que, na ocasião, os senhores da guerra tentavam uma trégua
impossível. Nenhum dos exércitos subjugou o outro, nenhum capitulou, mesmo
assim tentava-se a paz. Nessa ocasião, o Governo de Zâmbia mediava a tentativa
do que seria o “Acordo de paz de Lusaka”, a capital do país anfitrião. Chegaram
a um entendimento e a paz foi celebrada. Em Luanda, houve comemorações, festas
e reencontros.
No dia seguinte, soldados da Unita bombardearam a
transmissão de energia e atingiram alvos civis. Nada muito duradouro, mas
assustador. O Jornal Popular de Angola, controlado pelo governo, nas mãos do
MPLA, circulou então com um editorial na primeira página que era de arrepiar. O
redator, com certeza, tinha acabado de ler o conto de Rubem Fonseca. Pois a
maneira que seria feita a cobrança, com duras ameaças de retaliação, deixaria
Átila, o huno, com ares de bom moço.
Mas por que estou lembrando desses episódios agora? Simples:
não quero assistir uma tragédia. Mas, se ela vier e o grau de mortalidade tiver
sido alimentado pela irresponsabilidade e pela burrice, eu vou virar um
cobrador. Preparo uma lista de todos os imbecis que abusaram da boa-fé ou
ignorância para contrariar o que organizações médicas internacionais indicam
como o melhor.
Além de cobrar de alguns, vou sugerir onde devem ser
entregues os corpos dos que sucumbirem por causa da pandemia. Um deles da minha
lista mora numa casa emprestada com amplos jardins.
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