A primeira estranheza veio com o decreto da “Pátria
armada”: Sergio
Moro concluíra ser um exagero a volúpia de armas que o presidente
pretendia liberar aos cidadãos, mas achou melhor deixar por isso mesmo.
Não demorou e lá estava o ex-juiz lançando o seu
próprio “pacote
anti-crime”, sob olhares e holofotes, trazendo, como principal estandarte,
a ampliação da “excludente
de ilicitude” aos homens da segurança, para reduzir as já mínimas
chances de serem punidos pela altíssima letalidade.
Ninguém entendeu muito bem por que uma lei “anti-crime” se
iniciava com mecanismos de isenção de pena para quem cometia homicídios, mas
isso apenas mostrou o quanto Moro já havia encarnado, com menos de dois meses
de governo, o “bandido bom, bandido morto”.
Quando foi se explicar na fraquíssima exposição de motivos
do projeto, Moro disse que nos becos estreitos das favelas era mesmo muito
difícil distinguir bandidos de cidadãos de bem, e mostrou como a
aplicação de mais estímulos à violência policial tinha um endereço certo.
Enfim, ao visitar um presídio federal, logo após tornar-se
pública a acusação de tortura denunciada por membros do Ministério Público
Federal, o ex-juiz cunhou a expressão que, até então, era a mais vigorosa de
seu arsenal bolsonarista: “a partir de agora é no porrete ou na cenoura”.
Esse percurso já lhe fazia por merecer o título de 04, como
escrevera neste mesmo espaço em outubro de 2019. A cereja do bolo, no
entanto, veio agora com a defesa dos policiais amotinados do Ceará. Em várias
declarações, Moro fez questão de frisar a normalidade da vida local durante o
movimento – ignorando as mais de duas centenas de mortes que ocorreram nesse
breve período.
Emparedado pela proibição da greve militar, cuja
interpretação se pacificara no STF, Moro derivou para aplaudir o
profissionalismo dos homens da segurança e concedeu-lhes uma espécie de
excludente de ilicitude própria ao frisar que mesmo sendo os atos ilegais, os
policiais ainda assim “não eram criminosos”. Seu subordinado, chefe da Guarda
Nacional, fez ainda pior, estimulando e elogiando os policiais em plena
assembleia de classe.
Por mais que se preze o direito de greve, é difícil
concordar com as técnicas de violência empregadas no movimento cearense, de
tiros que furaram pneus das viaturas a desfiles mascarados impondo ao comércio
toques de recolher. Mas nada disso desestimulou Moro a fazer a opção
preferencial pelo corporativismo do chefe sobre seus deveres de ministro da
Segurança Pública.
Em nome do poder, arquivou o discurso da lei e da ordem, sem
maiores constrangimentos.
É certo que, desde a divulgação de conversas
mantidas com Deltan Dallagnol sobre o julgamento de Lula, seu apego à lei
vinha sendo fortemente desmistificado. Até os mais entusiasmados adeptos da
“luta contra a corrupção” haviam sido tomados por certo desalento ao conhecer
o making of das decisões e seus diálogos escusos.
De outro lado, o conjunto de novos mecanismos do inusitado
processo penal da “República de Curitiba”, que haviam sido saudados como
grandes novidades, passo a passo, vem sendo deslegitimados juridicamente, como
a forma de tratar processualmente as delações e, sobretudo, o caso da “condução
coercitiva”, já considerada inconstitucional.
Sempre houve, todavia, aqueles que se bateram pela ideia de
que de alguma forma, os fins justificariam os meios, por mais duvidosos que
estes fossem. Por motivos como esses, Moro nem sequer chegou a ser julgado pela
divulgação ilícita de conversas interceptadas, fortemente criticada no STF pelo
ex-ministro Teori Zavascki. Ao final, ficou tudo por isso mesmo, sendo os
procedimentos arquivados pela “perda de objeto”, tão logo o ministro pediu sua
exoneração da magistratura.
A imersão no governo federal e o mergulho na política tem
mostrado Moro cada vez mais distante seja da lei, seja da ordem.
O silêncio é uma das principais armas para conviver com os
escândalos criminais que circundam todos os filhos do presidente. Você não vai
ouvir Sergio Moro falando sobre a rachadinha dos assessores de
Flávio, sobre as fake news do ódio no gabinete de Eduardo, ou as
intensas ligações familiares com o Escritório do Crime, cujo líder fora,
inclusive, descartado da relação da Polícia Federal entre os fugitivos mais
perigosos do país.
Moro já mostrou que a PF pode ser um importante instrumento
de defesa, na instauração de inquérito policial contra o porteiro do condomínio
Vivendas da Barra, supostamente por colocar Bolsonaro na
cena de um crime; ou de retaliação política, ao pretender punir Lula pela Lei
de Segurança Nacional em razão de críticas ao presidente e quando requisitou
inquérito sobre cartazes de um festival punk que ridicularizavam o chefe.
Faz sentido. Afinal, como diria sua esposa Rosangela, “Moro
e Bolsonaro são uma coisa só”.
Mas nada simboliza melhor a domesticação do juiz, do que a
postura de desfilar de terno em tanque de guerra, numa visita ao presídio da
Papuda, tão logo explodiu a crise do vídeo de Bolsonaro convocando para ato
contra o Congresso. O direito a reboque da força bruta – lembrando as vezes em
que Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes soltaram seus balões de ensaio sobre o
AI-5.
Para dar uma dimensão cênica ao episódio, faltou apenas um
close do ministro olhando para a câmera, enquanto a voz do narrador em off anunciava: Sergio
Moro 2, o amigo agora é outro…
MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor.
Doutor em Criminologia pela USP, é membro e ex–presidente da Associação Juízes
para a Democracia
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