A cada dia mais, o presidente deixa de lado os disfarces e
escancara suas pretensões autoritárias. No sábado passou a convocar
oficialmente o ato público do próximo dia 15. Com isso expõe seus seguidores ao
risco de contágio pelo coronavírus, mas, segundo ele, esse vírus aí “não é tudo
isso que a grande mídia propaga”.
Saúde pública à parte, o dia 15 de março promete ser uma
apoteose da truculência política. Nas redes sociais a convocação destila ódio,
clama por “intervenção militar já”, calunia ministros do Supremo Tribunal e faz
apologia da violência e da censura. É tudo o que o chefe de governo mais adora.
Viciado em praticar bullying estatal contra as redações independentes, ele
pressiona empresários que anunciam em jornais, discrimina os órgãos de imprensa
que lhe desagradam e faz o que pode (e, principalmente, o que não pode) para
quebrar empresas jornalísticas e humilhar jornalistas. Para ele, quanto mais
desaforado for o dia 15, melhor.
O clima piora a cada lance. Na semana passada, o governo
vetou a Folha de S.Paulo na cobertura do jantar de Bolsonaro com Trump em
Miami. Em outra frente, ordenou a retirada dos diplomatas brasileiros de país
vizinho – a ameaça de guerra é o gozo do nacional-populismo. O orçamento das
Forças Armadas só cresce, enquanto os elogios das autoridades aos policiais
amotinados proliferam, para deleite das milícias e dos parlamentares que
trabalham para elas. Para completar o serviço, o chefe de governo, sem mostrar
nenhuma prova, começou a acusar o Tribunal Superior Eleitoral de ter fraudado
as urnas eletrônicas no primeiro turno de 2018. O objetivo é desmoralizar as
instituições do Estado Democrático de Direito. É para isso que vai servir o dia
15.
Dizem os bolsonaristas que todo ato público é democrático.
Mentira. Bem sabemos que a democracia garante aos comuns do povo o direito de
gritar o que quiserem, incluídos insultos contra o presidente da Câmara dos
Deputados, mas o chefe do Poder Executivo, obrigado pela Constituição a
promover a harmonia entre os Poderes, não tem o direito de açular suas falanges
a xingar a Câmara, o Senado e o Supremo. Toda democracia tem gente na rua, é
verdade, mas gente na rua não é sinônimo de democracia. No nazismo alemão, um
regime totalitário, e no fascismo italiano, uma tirania, havia rios de gente na
rua. Há comícios até na Coreia do Norte, que não é nada democrática. Ditadores
se deliciam com os aplausos das multidões adestradas.
Portanto, os chamamentos do presidente brasileiro para um
evento cuja propaganda está repleta de ofensas ao Legislativo e ao Judiciário
não têm nada de democráticos. São, isso sim, indícios de fascismo.
Diante desses indícios, clamorosos, o mais chocante é a
apatia das oposições. O Estado brasileiro foi tomado por uma estranhíssima
“democracia militar”, com oficiais de alta patente controlando todos os
ministérios e gabinetes no Palácio do Planalto, e os líderes de oposição,
quando muito, postam um tuíte lamuriento em pleno carnaval ou vão posar de
vítimas em Paris. O chefe de Estado desembarca um palhaço na porta do Alvorada
para caçoar do pibinho, oferecendo bananas aos repórteres, e os líderes
oposicionistas resmungam para suas claques sectárias. É patético.
Aprendamos com o passado. Em 1966, JK, João Goulart e Carlos
Lacerda costuraram um arremedo de Frente Ampla contra um governo militar que
tramava o endurecimento da repressão. Fracassaram, mas tentaram. Em 1984,
políticos tão diferentes como Ulysses, Tancredo, Brizola, Montoro e Lula se
uniram na campanha das Diretas Já. Perderam, mas apressaram o fim da ditadura.
E agora? Por que é que Fernando Henrique Cardoso, Luiz
Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes não convocam o País para dizer “não” ao
arbítrio que se insinua no horizonte? Bem sabemos que não é simples. Os três
cultivam pirraças recíprocas. Ciro, dado a valentias verbais, dispara desaforos
contra a “esquerda bandida” e fecha portas. Lula, machucado pela condenação –
controversa e açodada – que o trancou numa cadeia, tem motivos para andar
zangado, mas bem que poderia superar a autocomiseração e, em vez de elogiar as
agressões de Bolsonaro contra a imprensa, fazer um gesto para unir campo
democrático. Para completar, FHC, depois de lavar as mãos no segundo turno de
2018, entregou-se ao imobilismo de nhenhenhéns, mimimis e não-me-toques. Enfim,
o clima entre eles não ajuda.
Mas, a despeito de tudo isso, os três são as maiores
lideranças democráticas do Brasil: nunca flertaram com o arbítrio nem atentaram
contra a imprensa, contra as artes, contra a ciência e contra a universidade.
Com esse denominador comum, acima das diferenças legítimas que os dividem, eles
têm uma base para se acertar.
A liberdade e os direitos fundamentais estão sob ameaça no
Brasil e, como escreveu a historiadora Heloisa Starling, “o que protege a
liberdade é uma coisa só: nossa capacidade de mobilizar as pessoas em sua
defesa”. A democracia precisa de Lula, FHC e Ciro – juntos. Se eles souberem
unir forças, a maioria dos brasileiros vai segui-los. E vai frear o fascismo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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