quinta-feira, 12 de março de 2020

DISSINTONIA

Zeina Latif, O Estado de S.Paulo
A ameaça do coronavírus bate à porta. O que se vê, no entanto, não é apenas um país despreparado para a crise, mas também sem rumo.
O presidente negligencia o problema, enquanto o País espera informações e um plano de ação do governo.
Fernando Reinach faz o alerta. Um quadro epidêmico no Brasil não pode ser descartado. Será necessário implementar nas próximas semanas um conjunto de ações sanitárias para minimizar o risco de colapso do sistema de saúde, como as conduzidas na Inglaterra, França e Alemanha. Para início de conversa, é preciso disponibilizar testes para coronavírus em larga escala e com rápida resposta.
Tudo muito distante de nossa realidade.
Alguns economistas sugerem expansão fiscal e aumento das concessões de crédito do BNDES para proteger a economia. Uma recomendação equivocada.
A prioridade no momento é proteger as pessoas e o sistema de saúde, para que se possa reduzir o risco de um quadro grave no País.
A defesa da economia dependerá do tamanho e da natureza do impacto do coronavírus, o que ainda não está claro. Por exemplo, se o mercado de crédito for afetado de forma aguda, como em 2008/09, medidas administrativas do Banco Central serão necessárias para evitar uma crise de liquidez e, no limite, linhas emergenciais de bancos públicos poderão ser acionadas.
Não é o caso de aumentar os empréstimos do BNDES. A demanda de investimento será afetada pelas muitas incertezas.
Além disso, ainda que muitas empresas enfrentem dificuldades para ter acesso ao crédito, não é por falta de recursos que o investimento não deslancha. É por falta de bons projetos em um país difícil, com regras do jogo complexas, mal definidas e que podem mudar sem critério.
Não faltam pesquisas apontando o fracasso da política de campeões nacionais do BNDES em elevar o investimento das empresas contempladas, como aponta Sergio Lazzarini.
A proposta de aumentar o investimento público chega a ser irresponsável. Não se trata apenas de ameaça à regra do teto de gastos – a principal âncora dos juros baixos – e de prejudicar a confiança de investidores. Trata-se da baixa capacidade do Estado brasileiro de fazer projetos de qualidade.
De acordo com a auditoria do Tribunal de Contas da União, 37,5% das obras financiadas com recursos federais estão paralisadas ou inacabadas. A razão principal não é a falta de recursos, mas sim problemas técnicos ou com órgãos de controle. Apenas 10% decorrem de dificuldade financeira.
Convém também lembrar de obras que foram finalizadas, mas que têm retorno social discutível, como estádios de futebol e estaleiros.
Além disso, apesar de os gastos com investimento serem considerados um uso mais nobre dos recursos públicos (até com exageros, como se gastos com saúde e educação não fossem essenciais), eles não são a melhor forma de reagir a choques transitórios que demandam medidas emergenciais.
O tempo necessário para execução é longo, ainda mais no Brasil, onde nem sequer há na prateleira bons projetos para serem rapidamente implementados. Além disso, muitos investimentos implicam gastos de custeio no futuro – como a construção de hospitais e escolas, que precisam de recursos para funcionar –, nem sempre viáveis do ponto de vista orçamentário.
Ações emergenciais devem ser, tipicamente, gastos com custeio de curto prazo. E, no quadro atual, teriam de ser focalizados na área sanitária e de saúde.
A dissintonia com o momento do País não para por aí. O Congresso avança em decisões que aumentam o rombo fiscal – com voto de parlamentares da base governista –, como a de derrubar o veto do presidente da República ao aumento do limite de renda familiar para se ter acesso ao Benefício de Prestação Continuada. O impacto fiscal será na casa de R$ 20 bilhões ao ano. Caberá manifestação do TCU, posto que não há fonte de recursos definida.
Há risco de outras pautas-bomba. As falhas do governo não justificam a irresponsabilidade do Congresso.
Se seguirmos nessa trajetória, aí sim a crise será muito grave.
* Consultora e doutora em economia pela USP
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