Pouco mais de um ano de governo Bolsonaro e tornou-se um
bordão, aceito em amplos ambientes, a ideia de que os democratas brasileiros
precisam se articular e se entender para derrotar a estratégia de
enfraquecimento da democracia representativa, levada a cabo pelo Presidente da
República. Situação limite essa, pois caberia, a quem ocupa esse posto, ser
justamente o mais poderoso e eficaz defensor do regime e da Constituição,
graças aos quais chegou aonde está. Os fatos, porém, já não deixam dúvida de
que temos um presidente subversivo da lei e da ordem. Esse ponto é tacitamente
reconhecido, seja por quem aplaude, seja por quem abomina a sua conduta
golpista. Quem aplaude admite lhe dar ainda mais poderes para, supostamente,
mandar os políticos embora. Quem abomina, busca a melhor maneira de atalhar
esse seu caminho.
No campo bolsonarista, eventuais dúvidas táticas sobre como
levar ao sucesso a sua estratégia golpista resolvem-se com ordens do dia de um
capitão que se tornou especialista em constranger generais. A ordem em vigor,
no momento, convoca abertamente, para o próximo domingo, 15/03, uma
manifestação de rua, fisicamente próxima à Praça do Três Poderes, para aclamar
o presidente e contestar as autoridades ocupantes dos dois outros poderes da
República.
A essa altura, a sociedade, apreensiva, já se pergunta, com razão, o
que farão a Polícia Militar e as Forças Armadas se algum dos dois poderes
postos na berlinda solicitar, legitimamente, sua proteção, em caso dessa
manifestação sair dos limites razoáveis e degenerar em agressão direta como,
aqui e ali, há muito tempo se ensaia.
Augusto Heleno esteve só, em sua
provocação golpista? Poderia ser devidamente “enquadrado”, por seus
interlocutores na ativa, depois daquelas declarações? Autoridades militares responsáveis
e comprometidas com a democracia terão força para não deixar que o ovo da
serpente alimente os apetites e contamine a corrente sanguínea de seus pares e
comandados?
Essas perguntas não calam porque nenhuma pessoa sensata, que
observe com atenção a cena política atual, ignora que as cúpulas dessas
corporações já podem estar sofrendo uma dupla pressão nas bases que, por
hierarquia profissional, comandam. Refiro-me à disseminação, pelo aparelho de
doutrinação bolsonarista, em estratos mais baixos da oficialidade das forças
armadas, de uma nostálgica ideologia golpista e salvacionista que a derrota do
regime autoritário na transição democrática dos anos de 1980, seguida de três
décadas de democracia, puseram em desuso naquele ambiente. Em que grau essa subversão
de valores democráticos já avançou recentemente na corporação é algo que só
pode ser sabido por quem detém informações privilegiadas. Mas o processo
preocupa, assim como deve preocupar também a pressão corporativa que pode
emanar, em grau crescente, ainda mais embaixo, diante de uma eventual
indisposição, por dever constitucional, de comandantes militares com um
presidente subversivo. Sim, pois esse presidente e seus filhos propagam um
discurso demagógico que acena às tropas com vantagens materiais e, no caso de
policiais transgressores da lei, também com uma odiosa impunidade.
Já nas instituições civis e no campo político heterogêneo
que se opõe a essa aventura, parece ainda estar longe o momento em que uma
estratégia comum será pactuada. Ela convém, entre outras razões, para tornar
consequente a tática de evitar o confronto, que tem sido intuitivamente adotada
por todos, por cálculo político racional, e/ou por receio de retrocesso
institucional. Paciência e moderação têm sido as contraordens que até aqui
interditaram o caminho, democraticamente justificável, de um processo de
impeachment, para o qual o presidente já forneceu vários motivos, cometendo
sucessivos crimes de responsabilidade.
O bom senso já nos sugere supor que esses crimes estão sendo
cometidos deliberadamente, como um risco calculado, para antecipar um confronto
político, num momento em que se sabe ainda não existir, no Congresso, maioria
qualificada para impedir o presidente. E ela não existe justamente porque ainda
não há, no eleitorado, clara rejeição ao presidente (como já existe na
sociedade civil), nem há, no empresariado, convicção sobre o malogro da atual
política econômica. Com eleitores divididos e empresários indecisos, o
Congresso fica neutralizado para um confronto, embora possa operar – e tem
operado – como importante força política de contenção do golpismo presidencial.
Assim, ao usarem o cálculo político, lideranças do Congresso
e das demais instituições civis têm conseguido evitar que Bolsonaro converta a
eventual rejeição de uma denúncia contra si em capital político, isto é, em
trunfo para avançar mais em sua estratégia golpista. Ao falarem com prudência
sobre o tema, as forças políticas mais responsáveis do País têm evitado dar, ao
bolsonarismo, o pretexto que busca para colocar a sociedade (e as forças
armadas) diante de um dilema crucial entre um quadro de desordem e uma solução
autoritária. Cenário plausível, pois não temos mais direito a duvidar de que a
lógica miliciana que guia o Presidente não hesitará em fomentar (inclusive
apelando à violência e ao terror) tal quadro problemático para obter tal
solução.
Tudo correto, portanto, com a tática dos democratas. Mas
alguma tática, por mais racional e prudente que seja, pode ter sucesso, em
política, se não estiver ligada, de modo politicamente convincente, a uma
estratégia? É possível defender a democracia com eficácia política pensando só
em prevenir, isto é, tratando-a – para reiterar jargão conhecido – como
plantinha tenra que se deve regar todo dia, tal qual bem alertava Octávio
Mangabeira, como sugestão de conduta virtuosa para tempos normais? Se não
estamos em estado de exceção, mas estamos num tempo de gravidade excepcional, é
preciso ver que a democracia é mais que uma planta tenra. Sequer é só uma
árvore.
É complexa floresta de instituições, direitos e interesses,
que pode ser agredida, inclusive, pelo manejo demagógico dessa malha. A
democracia representativa precisa não apenas ter, mas demonstrar, sempre, a
força necessária para dissuadir aventureiros, quando eles a testam.
A missão não é fácil pois o terreno do trabalho atual é
pantanoso. A estratégia dos golpistas é ajudada pela imagem má que políticos e
partidos têm perante a sociedade e o eleitorado. Aqui não tenho como me deter
sobre razões e não razões desse fenômeno, mas chamo a atenção para o fato de
que a imagem negativa se refere a apenas um lado da realidade da democracia
representativa.
O outro lado, muito positivo, é o suculento inventário de
conquistas democráticas que encontram no Congresso uma usina de processamento.
A agenda de políticas públicas socialmente positivas avançou muito no Brasil
desde que superamos a ditadura militar e isso se deve, fortemente, a processos
de elaboração e negociação legislativa. No fundo, o povo sabe disso e não se
pode precipitadamente achar que sua insatisfação com outros aspectos da
atividade de representação política leve a que ele queira abrir mão dela, seja
para entregar seu futuro a ditadores, seja para cair na ilusão de que pode,
como povo, governar diretamente o País. Pode ter faltado ao povo brasileiro, no
passado, ocasiões de participação maior, para exercer uma cidadania mais
qualificada e pode estar lhe faltando hoje um cardápio de representantes de
melhor qualidade. Mas algum senso de medidas não lhe falta, mesmo quando suas
necessidades e medos abrem espaço a demagogias populistas. Por isso, entre nós,
jamais tiveram durabilidade aventuras caudilhescas irresponsáveis, ou discursos
meramente utópicos. Nossas elites políticas, mesmo quando não democráticas,
precisaram sempre negociar sua legitimação no terreno das realizações
concretas.
Mas preocupa, e muito, a ausência ou, ao menos, a
invisibilidade, na atual conjuntura, de uma estratégia política comum das
forças democráticas, que se preocupe com movimentos táticos, mas também as
prepare, desde já, para desdobramentos que não se pode prever de antemão. Deixo
claro que não se trata de propor que persigam objetivos político-eleitorais que
supostamente possam unir democratas de direita, de centro e de esquerda. Isso é
quimera. Trata-se de cuidar, em conjunto, da preservação de condições para que
disputas democráticas continuem acontecendo. Isso passa por não deixar dúvidas
na opinião pública sobre a capacidade das instituições se fazerem respeitar,
inclusive pelos poderosos. Do mesmo modo, não se trata de fazer análises
adivinhadoras de cenários futuros, como se ações políticas devessem se orientar
por essas especulações. Sabemos que nenhuma linha de ação tem futuro se não se
ancorar no que há, no aqui e no agora. Trata-se é de não deixar que um poderoso
inimigo da democracia representativa jogue solto e decrete o futuro como
resultado de ações ousadas no presente. Ponho-me entre aspas para recorrer a
uma metáfora que usei em artigo publicado há três meses: “um desafio à política
positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga
que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante
demolidor” (Política positiva e política negativa, Estadão, 01.12.2019).
Na ausência de estratégia defensiva comum, cada zagueiro age
à sua maneira. Declarações do ex-presidente Lula, em recente homenagem que
recebeu da esquerda francesa, se ajustam como uma luva à metáfora acima. Aposta
suas fichas num novo embate eleitoral polarizado, em 2022. Nessa posição há
dupla racionalidade política: objetivamente, ele lidera, de fato, o partido que
ainda é a maior força eleitoral da oposição e que, por isso, pode pensar em
desafiar eleitoralmente o bolsonarismo, nem que seja para conservar essa
condição de polo de oposição, que conquistou em 2018. E, subjetivamente, Lula
raciocina ser esse o melhor modo de seguir politizando seu embate com a Justiça
brasileira. Porém, ao dizer que esperar 2022 é dever democrático, ele não
apenas descarta, por ora e por realismo político, a defesa de um processo de
impeachment. Vai mais longe e admite que Bolsonaro ainda não cometeu crime de
responsabilidade que o justifique. Relaxando assim na marcação do atacante
agressivo, esse “bom mocismo” fará, da ala do lado esquerdo da defesa
democrática, uma avenida. Quantos gols serão marcados por ali até um zagueiro
democrata poder se arriscar a um contra-ataque nesse sonhado 2022? Em quanto já
estará o placar em favor do time cuja estratégia é asfixiar a democracia? Que
chance haverá de haver uma eleição livre?
Zagueiros democráticos mais ao centro (os do fugidio centro
político e os que ocupam posições institucionais centrais) costumam usar
retórica crítica mais contida que a do PT, porém têm sido mais diligentes na
marcação do atacante. Ainda assim não escapam da carapuça da metáfora. Marcam
por zona, evitando o enfrentamento individual, justamente porque operam
instituições e – é preciso reconhecer – elas objetivamente têm impedido, até
aqui, demolições explícitas. Mas os recuos que conseguem impor revelam-se
efêmeros porque dirigem ao atacante seguidas advertências, mas não sanções por
violação das regras. Assim, no momento seguinte, novos ataques voltam a deixar
a defesa em permanente estado de tensão e perigo. Contudo, prevalece sempre a
tática da paciência de jardineiros de plantas tenras, sancionada por recentes
declarações do também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um experimentado
político orgânico que a realidade quer converter em outsider. Aos atores com
seu perfil político e aos que detém poder real também cabe fazer a mesma
pergunta que pode ser feita à esquerda petista: até que ponto arranhões
parciais restantes após cada escaramuça poderão esgarçar – ou já esgarçaram, de
algum modo – o tecido da democracia, a ponto de comprometer a chance de
chegar-se a 2022 ao menos no compasso da situação atual? O enfrentamento, que
táticas prudenciais querem evitar agora, poderá ser evitado se, em dado
momento, a infiltração antidemocrática tiver corroído o Estado a ponto de
setores decisivos seus comportarem-se como milícias? Haverá eleições “normais”
se o bolsonarismo pressentir uma derrota eleitoral? E havendo eleições que,
porventura, confirmem sua derrota, haverá paz para que haja governo? Que poder
de retaliação terão, então, caminhoneiros em pé de guerra e policiais
amotinados, se os laços que os une hoje ao bolsonarismo prosperarem por um
continuado e desabrido uso não republicano do poder? E que reação se pode
esperar das instâncias judiciais diante dessas retaliações, após as mudanças
que podem ser feitas no STF até lá?
Zagueiros com um terceiro tipo de perfil político são
imprescindíveis numa hora dessas. Refiro-me a uma direita conservadora que
ainda não entrou para valer em campo e precisa entrar. Um cochilo da ala
direita, na marcação de um atacante que se apresenta como conservador, embora
seja o seu oposto, pode ter efeito bem mais devastador para a democracia
representativa do que cálculos políticos e eleitorais de uma esquerda fora do
poder. Um conservadorismo político que mereça esse nome não pode, depois de
tantas lições do passado, compactuar com uma estratégia desestabilizadora da
ordem e das instituições moderadoras, que tenta emparedar o Congresso,
intimidar o Judiciário e sabotar, ao modo do chavismo (ver Demétrio Magnoli, “O
povo e Exército” – FSP, 29.02.2020) a hierarquia das forças armadas. Principalmente
não pode chancelar uma propaganda ideológica que quer desacreditar a
conciliação como método, no intuito (quimérico, mas nem por isso menos
perigoso) de eliminar a chamada “dialética da ambiguidade”, uma marca de origem
da nossa tradição política. Conservadores que se prezam não podem coonestar com
a conspiração de um governo passageiro para sufocar e assassinar uma tradição
nacional.
Democratas ao centro e à esquerda não podem perder de vista
que convencer conservadores a tirar o oxigênio da aventura golpista é o
objetivo que pode firmar uma estratégia política comum, que falta aos
democratas de todos os matizes para darem consequência política realista –
portanto, eficácia – à conduta tática prudencial que têm adotado. Essa conduta
precisa deixar de ser só intuitiva e reativa, para ser também racional e
propositiva. O momento exige equilibrar sensos de prudência e de urgência para
dar à sociedade a confiança em que a democracia é a melhor opção e em que
golpistas serão enfrentados não só no terreno das ideias, mas também no da
política real.
Se a consequência dessa atitude realista será a abertura de
um processo de impeachment não é possível antecipar. Mas não se pode tirar a
hipótese da agenda, ainda que ela não esteja na ordem do dia. Criar um abismo lógico
entre essa eventualidade e a conduta prudencial é um suicídio político prévio.
Equivale a subestimar o poder do adversário de provocar destruição e desordem.
A conduta prudencial ajuda-nos não apenas a evitar esses males. Também nos
afasta da conduta imprudente de, num ambiente polarizado, fazer política sem um
objetivo estratégico no horizonte.
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