O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas se transformou em uma plataforma de
ataques contra o governo de Jair
Bolsonaro, denunciado por diversas violações ao meio ambiente, a mulheres e
a indígenas, e pelo desmonte dos mecanismos de proteção aos direitos humanos. O
encontro, que acontece desde o final de fevereiro e é considerado como a
principal sessão do ano, vem colocando o Itamaraty em uma posição defensiva.
A ofensiva da sociedade civil e de alguns dos principais
relatores da ONU coincide com outro momento complicado para o governo de
Bolsonaro. Pela Europa, governos e parlamentares têm questionado o acordo comercial entre a União Europeia e Mercosul. Câmaras
Legislativas de regiões da Bélgica e Áustria já promoveram votações para
bloquear o tratado, alegando que não aceitariam uma aproximação num momento em
que o governo brasileiro não se compromete em questões
ambientais.
Na Suíça, que assinou um tratado em separado com o Mercosul,
grupos políticos insistem que tal acordo precisa ser submetido a um referendo
popular, apostando numa reação contrária da opinião pública diante da atual
imagem internacional do Brasil. Mas a pressão internacional não se limita à Amazônia
e as últimas reuniões na ONU escancararam como o Brasil já perdeu a confiança
pelas inúmeras queixas recebidas sobre práticas incompatíveis com os diretos
humanos.
Em janeiro deste ano, uma reunião privada dentro da missão
diplomática do Canadá, em Genebra, fazia um exercício: como a comunidade
internacional e da ONU deveriam reagir em termos legais diante de governos
ditatoriais e com comprovadas violações graves de direitos humanos. O encontro,
mantido em total sigilo, era organizado por entidades internacionais e ONGs,
com o convite feito a governos europeus e de delegações de outras regiões do
mundo. Ottawa havia cedido uma sala em sua missão diplomática para o debate.
Oficialmente, tratava-se apenas de um exercício e uma simulação de cenários políticos.
Mas altamente simbólico.
Entre os países com sérias violações de direitos humanos
escolhidos para o debate confidencial estava o Brasil, ao lado do regime
autoritário da China e da repressão no Egito. A realidade é que, 50 anos depois
de o país ser alvo de denúncias nos antigos órgãos da ONU diante da tortura e
desaparecimentos durante a ditadura, o Brasil volta a preocupar a comunidade
internacional de uma forma sistemática.
Nos últimos 30 anos, denúncias e críticas foram apresentadas
contra os diferentes governos brasileiros. Mas jamais colocando em questão a
própria democracia e a existência do espaço cívico. Nos corredores da ONU e
salas de reuniões, o governo brasileiro vive uma pressão inédita em seu período
democrático, com relatores da entidade, ONGs brasileiras e estrangeiras,
ativistas e líderes indígenas se sucedendo em críticas ao desmonte dos
mecanismos de proteção aos direitos humanos no país.
Apenas em 2019, mais de 35 denuncias foram apresentadas
contra o Brasil e, em 2020, essa tendência ganhou um novo ritmo. Desde que a
sessão oficial do Conselho começou, dia após dia entidades e representantes de
mecanismos especiais das Nações Unidas tomam o microfone na solene sala da ONU
para acumular denuncias contra o Brasil. São bispos de Brumadinho ou defensores
de direitos humanos que chegam para suplicar pelo apoio internacional contra um
governo que, na visão de muitos, faz questão de menosprezar seus compromissos
internacionais.
Um dos questionamentos veio da relatora da ONU para o
direito à alimentação, Hilal Elver. Na quarta-feira passada, ela apresentou seu
informe em que criticou abertamente o Brasil. Segundo o texto, o país era um
“grande exemplo” de como instituições para o combate à fome estavam sendo
financiadas, no marco do Fome Zero. “Infelizmente, esta boa prática foi quase
perdida em 2019, quando o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional foi desmantelado”, lamentou. Os ataques levaram o governo
brasileiro a tomar a palavra na ONU para questionar o informe. A delegação do
Itamaraty afirmou ter ficado “desapontada” com algumas “informações enganosas”
do documento. De acordo com o governo, a reestruturação das instituições de
combate à fome teve como objetivo “modernizar” a administração.I
Indígenas
Outra área de atrito é a produção agrícola brasileira. Segundo o mesmo informe de Elver, é “particularmente preocupante o aumento significativo das queimadas na Amazônia brasileira, seguindo as promessas feitas pelo novo governo de abrir terras indígenas para a agricultura e mineração”. Bolsonaro e seus aliados fomentam reiteradas vezes essa postura, insistindo em projetos que abram as reservas. “O governo passou a chamar os povos indígenas que se opõem à sua política como anti-desenvolvimentistas”, criticou.
Outra área de atrito é a produção agrícola brasileira. Segundo o mesmo informe de Elver, é “particularmente preocupante o aumento significativo das queimadas na Amazônia brasileira, seguindo as promessas feitas pelo novo governo de abrir terras indígenas para a agricultura e mineração”. Bolsonaro e seus aliados fomentam reiteradas vezes essa postura, insistindo em projetos que abram as reservas. “O governo passou a chamar os povos indígenas que se opõem à sua política como anti-desenvolvimentistas”, criticou.
Nesse ponto, uma vez mais o governo rebateu, alegando que os
incêndios foram devidamente gerenciados e que a escala do problema era
“consistente” com a média histórica. Elver não se deu por satisfeita e voltou a
questionar. “A Amazônia é patrimônio de toda a humanidade”, insistiu, lembrando
como os incêndios em 2019 foram mais severos. Segundo ela, existem “interesses”
para abrir a região para a pecuária. “É uma situação importante e delicada o
uso de floresta para a Humanidade no futuro. Não podemos destruir apenas para
produzir mais alimentos. Isso não seria argumento aceitável”, disse.
Lembrando do impacto dessas ações para grupos indígenas, a
relatora ainda defendeu que haja algum tipo de investigação internacional sobre
a relação das grandes corporações e a situação da floresta, um cenário de
pesadelo para a diplomacia nacional. “Talvez com algum comitê especial da ONU”,
sugeriu.
Mineração
Durante a sessão, um tema que colocou pressão sobre o governo foi a legalização da mineração em terras indígenas. O caso levou Davi Kopenawa Yanomami a viajar até Genebra para alertar a comunidade internacional sobre a situação dos povos indígenas. Há um mês, Bolsonaro assinou um projeto de lei para regulamentar a mineração e a geração de energia elétrica em reservas indígenas. O projeto de lei será analisado pelo Congresso Nacional. Mas, em sua assinatura numa cerimônia no Palácio do Planalto, Bolsonaro declarou ser um “sonho” a abertura de reservas indígenas para a mineração.
Durante a sessão, um tema que colocou pressão sobre o governo foi a legalização da mineração em terras indígenas. O caso levou Davi Kopenawa Yanomami a viajar até Genebra para alertar a comunidade internacional sobre a situação dos povos indígenas. Há um mês, Bolsonaro assinou um projeto de lei para regulamentar a mineração e a geração de energia elétrica em reservas indígenas. O projeto de lei será analisado pelo Congresso Nacional. Mas, em sua assinatura numa cerimônia no Palácio do Planalto, Bolsonaro declarou ser um “sonho” a abertura de reservas indígenas para a mineração.
O projeto passou a ser alvo de duros ataques nas Nações
Unidas. O relator da ONU para o meio ambiente, David Knox, foi um dos que pediu
que o projeto seja barrado. Para ele, a medida de Bolsonaro é “profundamente
preocupante” e alerta que a situação dos indígenas seria “fortemente afetada”.
“Esse é um retrocesso no reconhecimento dos direitos indígenas”, insistiu. Na
mesma sessão, a pressão também veio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Em nome da entidade, o jurista Paulo Lugon Arantes afirmou que “o arcabouço
legislativo criado pelo Brasil desde sua redemocratização está sendo desmontado
em uma velocidade impressionante”. De acordo com o CIMI, no Congresso há mais
de 800 projetos que atentam contra o arcabouço legislativo criado no Brasil nos
últimos anos.
Uma vez mais, o governo tomou uma postura defensiva. No
debate, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, tratou o
assunto como se fossem “falácias” que estariam sendo ditas sobre a situação de
meio ambiente no país e indicou que “correções” seriam necessárias. Ao longo
dos dias, a embaixadora fez reuniões com o segundo escalão da cúpula da ONU
para pressionar por uma revisão da posição do organismo sobre a situação no
Brasil. Em vão.
Mulheres e religião
A pressão do Itamaraty não impediu que a situação das mulheres também fosse denunciada, num gesto que gerou desconforto no Palácio do Planalto que, por sua vez, exigiu uma ação do Itamaraty. O Brasil havia sido citado em um relatório submetido ao Conselho, ao lado de países onde a religião é usada como justificativa para impedir que meninas e mulheres tenham acesso à educação sexual, assim como direitos reprodutivos e acesso à saúde sexual. Desde o início do governo Bolsonaro, o país modificou sua política externa e de direitos humanos para levar em conta valores religiosos. De acordo com o informe, consultas realizadas na América Latina em 2019 chegaram à constatação de que programas de educação sexual e saúde reprodutivas foram cortados no Brasil. Isso, segundo as pessoas ouvidas nas consultas, teria uma relação direta com a “pressão de grupos religiosos”.
A pressão do Itamaraty não impediu que a situação das mulheres também fosse denunciada, num gesto que gerou desconforto no Palácio do Planalto que, por sua vez, exigiu uma ação do Itamaraty. O Brasil havia sido citado em um relatório submetido ao Conselho, ao lado de países onde a religião é usada como justificativa para impedir que meninas e mulheres tenham acesso à educação sexual, assim como direitos reprodutivos e acesso à saúde sexual. Desde o início do governo Bolsonaro, o país modificou sua política externa e de direitos humanos para levar em conta valores religiosos. De acordo com o informe, consultas realizadas na América Latina em 2019 chegaram à constatação de que programas de educação sexual e saúde reprodutivas foram cortados no Brasil. Isso, segundo as pessoas ouvidas nas consultas, teria uma relação direta com a “pressão de grupos religiosos”.
O relator da ONU para Liberdade Religiosa, Ahmed Shaheed,
confirmou sua preocupação e indicou que recebeu relatos de como as ameaças aos
direitos de meninas e mulheres são realidades em diversos locais. Segundo ele,
os estados da região continuam com leis seculares. “Mas as pessoas me relatam
que existe uma visibilidade cada vez maior de grupos religiosos em espaços
públicos que argumentam que alguns direitos de mulheres podem ser limitados com
uma justificativa religiosa”, disse. “Meninas e mulheres têm tido dificuldades
em ter acesso a direitos reprodutivos, com a consequência para a saúde e muito
mais que isso”, alertou.
Ao longo dos últimos meses, o Itamaraty tem adotado uma
postura que vem causando choque entre delegações estrangeiras. Em projetos de resolução
na ONU, o governo tem alertado que não aceitaria referências a termos como
educação sexual ou direitos reprodutivos. Em Nova York em setembro de 2019, o
governo ainda se somou a uma declaração liderada pelos EUA em que países
insistiam sobre a necessidade de se evitar a “criação” de novos direitos. Entre
eles, mais uma vez estavam os direitos reprodutivos e sexuais. O argumento é de
que tais referências poderiam abrir caminhos legais para o aborto.
Bachelet
A onda de críticas e cobranças contra o Brasil não ocorreram de forma isolada. No início do encontro da ONU, no final de fevereiro, o tom foi dado pela própria alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Num encontro fechado com a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, ela levantou a questão das violações contra indígenas e defensores de direitos humanos. O governo jamais revelou o conteúdo do encontro. Dias depois, num discurso oficial, Bachelet incluiu o Brasil na lista dos cerca de 30 países que vivem uma situação especialmente preocupante em temas de direitos humanos. Damares Alves, porém, já não estava mais em Genebra para escutá-la.
A onda de críticas e cobranças contra o Brasil não ocorreram de forma isolada. No início do encontro da ONU, no final de fevereiro, o tom foi dado pela própria alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Num encontro fechado com a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, ela levantou a questão das violações contra indígenas e defensores de direitos humanos. O governo jamais revelou o conteúdo do encontro. Dias depois, num discurso oficial, Bachelet incluiu o Brasil na lista dos cerca de 30 países que vivem uma situação especialmente preocupante em temas de direitos humanos. Damares Alves, porém, já não estava mais em Genebra para escutá-la.
“No Brasil, ataques contra defensores dos direitos humanos,
incluindo assassinatos – muitos deles dirigidos a líderes indígenas – estão
ocorrendo em um contexto de retrocessos significativos das políticas de
proteção ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas”, alertou
Bachelet. “Também estão aumentando as tomadas de terras indígenas e
afrodescendentes”, disse. Outro temor da representante da ONU se refere ao
trabalho dos movimentos sociais e dos ataques sofridos por ongs. Segundo ela,
também estão aumentando os “esforços para deslegitimar o trabalho da sociedade
civil e do movimento social”. No ano passado, ela já havia alertado sobre o encolhimento do espaço
cívico no Brasil, o que gerou duras reações por parte do governo
brasileiro. Desta vez, o governo optou por um ataque violento.
A embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani
Azevedo, pediu a palavra para descrever o questionamento de Bachelet de
“lamentável” e alertando que a chilena teria sido aconselhada de forma errada.
Uma análise da situação, segundo ela, não estaria sendo feita com bases em
dados e evidências atualizados. “Propomos uma conversa com base em fatos”,
disse. Ela ainda sugeriu que deva haver um fim para um embate entre “narrativas
politicamente motivadas”.
Ela ainda se recusou a aceitar as denúncias de Bachelet.
“Não há recuou para proteger o meio ambiente, muito menos na proteção dos
direitos indígenas”, declarou. “Pelo contrário”, disse a embaixadora, lembrando
que Bolsonaro criou o Conselho da Amazônia. Segundo ela, a demarcação de terras
indígenas é uma realidade e a proteção é conduzida de forma séria. “Existe um
amplo espaço cívico no Brasil”, completou a diplomata aplaudida pelo
bolsonarismo mais radical, lembrando que 900 entidades apoiaram a candidatura
do governo para o Conselho da ONU. Muitos desses apoios vinham de organizações
religiosas e a lista contava até mesmo com agências imobiliárias no México,
algo jamais explicado pelo governo.
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