Não param de me perguntar quais são os efeitos da pandemia
na cabeça e no comportamento da gente.
Em geral, a pergunta já contém a resposta esperada: o que
você pensa do “pânico”, que está se apoderando de nossas mentes?
Se faço de conta que não entendo, meus interlocutores
acrescentam “o pânico nos supermercados, com o pessoal estocando desde álcool até
papel higiênico”.
O fato é que não vejo nem escuto pânico algum, nem no
consultório (nota: meus atendimentos são hoje online, à distância) nem nas
ruas. Estocar me parece razoável para quem se prepara para um longo período em
que ficar em casa será o jeito de se resguardar.
A patologia, neste começo de pandemia, não está no suposto
pânico mas na negação do que está acontecendo, que se dá de várias maneiras.
Um exemplo explícito: um bispo declara que o vírus é simpático e irrelevante,
enquanto o medo do vírus é coisa de Satanás. Por que ter medo, com efeito?
Desde a primeira grande peste moderna no Ocidente (1347), e
talvez já antes, na peste dita de Justiniano (541), sempre houve mentecaptos
para pregar que a pestilência era mais uma praga, tipo as pragas bíblicas do
Egito, para humilhar os falsos deuses e mostrar o poderio do Deus do Antigo
Testamento. Portanto, não temam o contágio, meus irmãos, só venham para a
igreja.
Na hora do medo, há os que compram álcool em gel para revendê-lo a preços absurdos no
Mercado Livre ou na Amazon. E há os que oferecem explicações da pestilência
segundo as quais a proteção divina é garantida a quem segue a reta via. O mapa
está à venda na saída do culto.
Outro exemplo de negação nos foi oferecido pelo presidente
do Brasil, que se comportou como um garotão, o que o tornaria até simpático, se
ele não fosse presidente. O que significa se comportar como um garotão?
Significa uma insegurança radical, pela qual nada é tão importante quanto
receber um aplauso.
Bolsonaro pode certamente entender os argumentos de seu
próprio ministro da Saúde, mas é incapaz de resistir ao charme de um breve
momento em que será admirado por um punhado de seguidores.
Para não perder esse aplauso, ele se misturou a manifestantes na frente do Planalto e
assim pôs em risco a população brasiliense e brasileira. Pois, de fato,
qualquer comportamento que facilite o contágio facilita e acelera o colapso de
nosso sistema de saúde.
O presidente, aliás, ofereceu, nessa ocasião, um exemplo
perfeito do que é um patriotismo abstrato. Pegou uma bandeira das mãos de um
dos apoiadores e desfilou agitando-a. No entusiasmo infantil de ser
porta-bandeira (que ele sentiu e imaginou provocar nos presentes), ele se
esqueceu de que seus atos estavam pondo em perigo os seus compatriotas. Em
suma, um transtorno narcisista (banal nos adolescentes, mas nem tanto num
idoso) prevaleceu sobre qualquer cuidado (este, concreto) com a população
brasileira.
Tão interessante quanto recensear as patologias do momento é
considerar os mecanismos pelos quais nós humanos conseguimos enfrentar (e não
negar) a pandemia.
Nesta última semana, os italianos, confinados em suas casas,
de noite e de dia, juntos, de prédio em prédio, de janela em janela, cantaram —desde o hino nacional até canções de amor ou
“Bella Ciao”.
Cantaram para passar o tempo, para matar o tédio e,
sobretudo, para afirmar que o povo, embora dividido politicamente e hoje vítima
de um vírus assassino, ainda consegue levantar um coro.
Isso é patriotismo, ou seja, o sentimento de um destino
compartilhado. Não a patacoada com uma bandeira no meio de um contágio.
Epidemias e pandemias não faltam na história do Ocidente. O
confinamento era ditado pelo bom senso, antes de ser pedido pela ciência. O
“Decameron”, de Boccaccio, é um conjunto de histórias (alegres e ousadas)
contadas por sete moças e três rapazes confinados durante a peste de Florença
em 1348.
Infelizmente, nem todo mundo tem companheiros de
confinamento tão cheios de espírito, de malícia e de vida. Mas, convenhamos, é
a primeira pandemia em época de televisão e de streaming e, sobretudo, a
primeira em que dispomos da possibilidade ilimitada de nos relacionar com
amigos, parentes e amantes. Podemos estar isolados mas nunca sozinhos.
Os idosos, mais ameaçados pelo contágio, não devem nem sequer
ser visitados, mas podemos jantar com eles a cada noite. Basta ter um
computador na mesa.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas),
'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem
(Papirus)
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