No dia 07 de julho de 2014, véspera da semifinal da Copa do
Mundo de futebol, o técnico Felipão realizou o último treino tático antes do
confronto com a Alemanha. Naquele dia, após analisar os jogos anteriores dos
adversários, os auxiliares técnicos Roque Júnior e Gallo haviam entregue ao
comandante da equipe um relatório. Comparando os dados e as estatísticas dos
dois times, os ex-jogadores sugeriam que o Brasil deveria encarar os alemães
numa postura mais defensiva. Sem Neymar, machucado, a ideia era reforçar o
meio-campo, deixando Fred no banco e escalando Paulinho e Willian em seus
lugares.
A tese de Roque Júnior e Gallo era compactar a defesa e o
meio-campo da seleção brasileira para tentar conter a velocidade e as rápidas
trocas de passe entre Schweinsteiger, Kroos, Özil, Müller e cia. Cabeça-dura,
Felipão não acatou a sugestão. Quando entrou no gramado, o Brasil veio com uma
formação ofensiva, com Hulk, Fred e o jovem Bernard no ataque. Com 30 minutos
de bola rolando os alemães já venciam por 5×0, e o resto da história o mundo
todo conhece.
No dia seguinte ao maior vexame de nossa história esportiva,
o técnico Luiz Felipe Scolari admitiu que nunca havia treinado a seleção com a
escalação que levou a campo no Mineirão. A opção por Bernard, o garoto que
tinha “alegria nas pernas”, seria uma tentativa de surpreender o técnico alemão
Joachim Löw. Questionado por que não havia testado os titulares com Bernard na
véspera do jogo, o técnico justificou-se dizendo que sua estratégia era
“despistar” os rivais.
Jair Bolsonaro se encontra diante do adversário mais
perigoso desde que assumiu o comando do país. Embora nas entrevistas o
presidente sempre tenha minimizado a sua força, a verdade é que para chegar até
aqui o coronavírus derrubou economias muito mais poderosas do que a nossa.
Acompanhando com atenção as estatísticas e as tentativas das
outras nações de conterem o rápido ataque da covid-19, o auxiliar Luiz Henrique
Mandetta sugeriu que o Brasil enfrentasse o rival fechado na defesa, buscando
ganhar tempo nos momentos iniciais da partida até que o sistema de saúde
conseguisse equilibrar o jogo.
Jogar na retranca, porém, não é a tática preferida de
Bolsonaro. Insuflado por parcela importante da torcida, o ex-capitão planeja
mudar o esquema de jogo e ser mais arrojado na movimentação do seu time. Em
lugar do conservador isolamento horizontal proposto por Mandetta, Bolsonaro tem
ensaiado jogadas com Paulo Guedes para implantar em breve um inovador lockdown
vertical. Mas alterar a estratégia com a bola rolando pode ser extremamente arriscado.
Na “entrevista” concedida à XP Investimentos na noite de
sábado (28/03), Paulo Guedes apresentou as medidas desenhadas em sua prancheta
para conduzir a economia até a recuperação da atividade.
No pacote de aproximadamente R$ 750 bilhões (em torno de
4,8% do PIB), estão incluídos a injeção de liquidez por meio da redução das
exigências de compulsórios e outras regras prudenciais do Banco Central (R$ 200
bilhões) e empréstimos com taxas reduzidas a serem concedidos pela Caixa, BNDES
e Banco do Brasil (R$ 150 bilhões).
Ainda com o objetivo de tentar evitar o estrangulamento do
capital de giro, Guedes confirmou a linha de crédito especial do Bacen para
pequenas e médias manterem os salários em dia nos próximos dois meses (R$ 40
bilhões) e a complementação, pelo Tesouro, da folha de pagamentos das empresas
(R$ 50 bilhões).
Na linha de socorro da população mais pobre, o Ministério da
Economia já anunciou o reforço do Bolsa-Família, a antecipação do abono
salarial e do 13º salário para aposentados e pensionistas, a transferência dos
valores não sacados do PIS/Pasep para o FGTS (R$ 147,7 bilhões) e o auxílio
emergencial de R$ 600 mensais (mais R$ 50 bilhões). Para fechar a conta, Paulo
Guedes ainda sinalizou a rolagem de dívida para Estados e municípios, acrescendo
mais R$ 88 bilhões ao pacote.
Tendo perdido um precioso tempo negando a força do
adversário e o seu poder de ataque sobre a economia brasileira, o time de
Bolsonaro enfrentará a falta de ritmo de jogo para tentar virar o placar contra
o coronavírus. Até chegarem ao bolso de cidadãos e ao caixa das empresas, as
medidas anunciadas por Paulo Guedes precisam ser articuladas em diferentes
níveis. O auxílio emergencial, por exemplo, ainda depende de aprovação no
Senado e sanção presidencial, assim como a ajuda para Estados e municípios, que
requer lei complementar para ser efetivada – sem falar na ausência de previsão
legal ou regulamentar para a linha de crédito do Banco Central e as garantias
do Tesouro para a folha de pagamentos.
No caso das transferências para a população mais pobre, a
equipe de Guedes terá que atuar improvisada numa posição para a qual não está
acostumada a jogar. Tendo passado o primeiro ano do governo desarticulando
programas sociais e reduzindo sua dotação orçamentária, terá poucos dias para
zerar a fila do Bolsa-Família e driblar a burocracia governamental e da Caixa
Econômica Federal para fazer o dinheiro chegar a pessoas que não estão
abrigadas pelo INSS e nem inscritas no Cadastro Único.
Atordoado com a velocidade com que a covid-19 envolve seu
governo, Bolsonaro se vê tentado a seguir a estratégia de Felipão no fatídico
“mineiraço” de 08/07/2014. Desprezando os dados, a observação do que acontece
no restante do mundo e a recomendação dos especialistas, o presidente deseja
partir para o tudo ou nada do decreto do fim do isolamento social. Com todas as
nossas fragilidades expostas, assistiremos novamente, estupefatos, a uma
goleada causada pelas tabelas mortais entre o colapso do sistema de saúde, de
um lado, e a recessão econômica, na outra ponta.
A grande diferença entre o fiasco de Felipão e a tragédia
anunciada de Bolsonaro, porém, será que o choro da derrota vai se revelar muito
mais dolorido do que um simples vexame num campeonato de futebol.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e
autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político
brasileiro”.
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