sábado, 4 de abril de 2020

A MENTIRA E O PALÁCIO

Editorial O Estado de S.Paulo
Pode-se, às vezes, ter a impressão de que as fake news são uma praga sofisticada, sendo muito difícil detectar sua origem, seus financiadores e os interesses envolvidos. Mas não é isso o que se vê no Brasil, ao menos em relação às fake news sobre política. Aqui, desde 2019, as principais campanhas de desinformação são explícitas quanto às suas motivações e mudam o alvo, de forma acintosa, de acordo com interesses bastante específicos. Não há nenhuma casualidade na maioria das fake news nacionais. Elas atendem recorrente e explicitamente aos interesses do Palácio do Planalto.
Segundo informou a Coluna do Estadão, desde o acirramento do embate do presidente da República com os Estados por causa da pandemia da covid-19, cresceu exponencialmente a onda de fake news contra os governadores. As mensagens têm circulado principalmente em grupos de WhatsApp. Preocupados em desmentir as informações equivocadas, os governos estaduais constataram haver uma propagação articulada, muitas vezes com o uso de robôs.
Um dos principais alvos das atuais fake news é o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que chegou a receber ameaças em razão das medidas que adotou para enfrentar a pandemia no Estado. O governo paulista montou uma espécie de gabinete de crise para combater as fake news.
“Nesta crise terrível, infelizmente, essa quadrilha, esse gabinete do ódio, que atua espalhando fake news, resolveu intensamente se voltar contra os governadores. Só servem para atrapalhar, com seus crimes e delírios”, disse o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), também alvo de ataques. Desde sua instalação, a CPMI das Fake News tem mostrado, de forma bastante consistente, como atua esse “gabinete do ódio”, formado por assessores especiais da Presidência, na difusão de fake news.
Antes dos governadores, no período que antecedeu às manifestações do dia 15 de março, os alvos preferenciais das campanhas de fake news eram o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e o da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Incitando o ódio e sem maiores compromissos com a verdade factual, as mensagens diziam que os dois atuavam contra as reformas e as medidas do governo federal. Como é evidente para quem acompanhou minimamente o cenário político nacional, o presidente da Câmara foi o maior responsável pela aprovação da reforma da Previdência no ano passado.
Antes dos presidentes da Câmara e do Senado, foram alvos das campanhas de fake news ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli. A movimentação difamatória contra o Judiciário ocorreu especialmente depois da decisão do STF reconhecendo a competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de corrupção e lavagem de dinheiro conexos a crimes eleitorais.
Tal foi a intensidade dos ataques contra o STF que o ministro Dias Toffoli abriu, em março do ano passado, um inquérito para investigar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, extrapolando a liberdade de expressão”.
No entanto, após decisão liminar do presidente do STF suspendendo, em julho do ano passado, investigações que usavam dados do antigo Coaf (atual Unidade de Inteligência Financeira – UIF), que beneficiavam o filho mais velho do presidente, senador Flávio Bolsonaro, arrefeceu significativamente a campanha virtual contra o presidente do Supremo. Ressalte-se que a liminar de Toffoli tinha respaldo jurídico. O que chama a atenção no caso é, mais uma vez, a afinidade entre as fake news e os interesses do Palácio do Planalto.
É um verdadeiro escândalo, realizado em plena luz do dia, sem nenhum pudor, esta sequência de campanhas de fake news contra quem os inquilinos do Palácio do Planalto consideram seus inimigos. Muitas vezes, o próprio presidente Bolsonaro compartilha essas mensagens. Diante desse modo de proceder, que afronta o Estado Democrático de Direito, não cabem transigências ou omissões.
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