Nos últimos dias, conhecidos que leram esta
reportagem sobre
o desafio à saúde mental na pandemia do coronavírus me procuraram para dizer
que a conclusão tinha provocado um frio na espinha, não pela sorte dos
americanos, mas pela dos brasileiros.
Conversei com uma renomada psiquiatra forense da
Universidade de Yale sobre o comportamento de Donald Trump.
Este foi o comentário de Bandy Lee: "Quem não tolera a
realidade é especialmente perigoso numa pandemia, algo que requer tanto esforço
coordenado de prevenção".
O estado
mental de um presidente já seria um fator de segurança nacional em
tempos de paz e relativa tranquilidade social.
Durante uma pandemia sem precedentes, comportamentos que
apontam para desequilíbrio e distúrbios de personalidade tornam um líder no
sistema presidencialista muito mais perigoso e letal.
E, aqui, temos a dupla ameaça continental. Jair Bolsonaro
chorando no ombro de militares com pena de si mesmo, enquanto planeja friamente
a morte em massa de brasileiros.
E Trump, consumido por cólera, acusado de pedir a
fornecedores que não entreguem suprimentos médicos urgentes “àquela mulher”, a
governadora democrata do estado de Michigan, Gretchen Whitmer, que ousou
criticá-lo.
Há três anos, Bandy Lee entrou em choque com a Associação
Psiquiátrica Americana (APA) por uma mudança, feita logo após a posse de Trump,
na orientação ética para a opinião de médicos sobre a saúde mental de figuras
públicas.
A APA alterou a chamada regra de Goldwater, que determina
que um psiquiatra só pode dar
um diagnóstico a uma figura pública se a examinar pessoalmente.
Lee afirma que a mudança foi política, e não médica ou
científica. “Observar um comportamento incomum num líder, informar e educar o
público sobre os variados tipos de desordem, não é o mesmo que diagnosticar um
paciente,” diz a psiquiatra.
“No momento em que alguém se torna paciente, a regra para o
médico é o sigilo absoluto.” Então, diz ela, a mudança da APA se tornou, na
prática, uma mordaça para a classe médica, depois da posse de um presidente que
dá sinais de instabilidade psíquica e neurológica.
“A APA não saiu atrás de médicos", lembra Lee, “que,
com base na observação de grande quantidade de vídeos, sugeriram que o
presidente sofre de uma leve forma de demência”.
Em novembro passado, o ex-médico da Casa Branca David
Schneider, que tratou de Barack Obama por 22 anos, sugeriu que Trump demonstra
em público sinais de ter pequenos AVCs, pela forma como, às vezes, luta para
pronunciar certas palavras.
A Constituição americana tem a 25a emenda,
que permite a remoção de um presidente se o vice-presidente toma a iniciativa
de declarar incapacidade física ou mental do chefe, acompanhado de pelo menos
oito membros do gabinete. O vice assume imediatamente.
O presidente pode resistir e pedir um voto às duas casas do
Congresso. Se dois terços não concordarem com o vice, o presidente recupera o
cargo.
Depois de três anos de quebra-quebra em Washington, o
Partido Republicano já deixou claro que não há limite para o comportamento de
Trump capaz de causar alarme.
O subserviente vice Mike Pence aguarda apenas a manhã de 4
de novembro, seguinte à da eleição deste ano, para se lançar candidato em 2024,
pouco importa o resultado das urnas.
A Constituição brasileira não tem nenhuma provisão para
comportamento que sinalize distúrbio mental ou doença física num chefe de
Estado.
O advogado paulista Acácio Miranda me explica que,
historicamente, houve debates sobre o tema, no período de Jânio Quadros, que renunciou
em 1961, e em 1985, quando Tancredo Neves entrou em coma e não pôde tomar
posse.
Miranda é especialista em direito constitucional e diz que o
comportamento errático de Bolsonaro só resultaria no seu afastamento através de
impeachment por incompatibilidade com o exercício da Presidência.
“Mas mesmo assim,” diz o advogado à Folha,
“estaríamos num território subjetivo, diante da presente Constituição.”
Em 2017, a psiquiatra Lee editou o livro "The Dangerous
Case of Donald Trump" (o perigoso caso de Donald Trump), em
que 27 psiquiatras e especialistas em saúde mental avaliaram o presidente com
base no seu comportamento em público.
Lee lembra que participou de uma conferência de psiquiatras
na Universidade de Harvard em que debateram o papel da profissão em denunciar
sinais de risco no comportamento de Trump.
Um deles disse que nenhum dos pacientes privados que, de
fato, havia diagnosticado oferecera tanta fartura de sintomas na forma de
pronunciamentos públicos registrados em vídeo. Na mesma hora, conta ela, a
maioria da plateia concordou.
Ao longo da conversa, Lee vai reiterando a distinção entre
diagnóstico de um paciente e as observações que ela faz. Considera Trump a
pessoa mais perigosa do planeta porque risco se aplica a situações concretas.
“Combina o status mental de uma pessoa com seu acesso ao
poder”, diz. “Se Trump fosse um cidadão privado, não seria um risco para o
país. Com seu acesso aos códigos nucleares, eu o considero o homem mais
perigoso da história.”
Lee vê no comportamento público de Trump, “muito mais
desinibido do que a média dos meus pacientes”, sinais de narcisismo patológico
e sociopatia —esta não se trata de diagnóstico privado, como seria a demência.
Ela afirma que, por ser incapaz de demonstrar empatia, o
presidente vê na pandemia uma oportunidade para se beneficiar.
Há dias, ele mandou um recado claro a governadores
democratas: demonstrem gratidão em público. De acordo com analistas, foi uma
forma de acumular sonoras úteis para anúncios da campanha de reeleição.
“Trump vê na pandemia do coronavírus, não uma crise
humanitária, mas uma inconveniência que pode atrapalhar sua reeleição e dar
prejuízos a suas propriedades”, diz a psiquiatra, especulando se o presidente
pode tentar algo para perturbar o processo eleitoral.
“Não estou falando de possibilidades, mas de
probabilidades”, conclui.
É mesmo difícil não temer que as observações da psiquiatra
de Yale descrevam mais de um presidente.
Lúcia Guimarães
É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi
correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos
jornais O Estado de S. Paulo e O Globo. Colabora com o canal digital MyNews.
Nenhum comentário:
Postar um comentário