O presidente Jair Bolsonaro renunciou à Presidência quando,
diante de cinco mil brasileiros mortos, perguntou “e daí?” Não exerce a
Presidência quem demonstra tal desprezo pelo seu próprio povo. Já não cabe mais
esperança de que ele entenda como é desempenhar as “magnas funções”, para as
quais foi eleito. Há suficientes palavras e atos ofensivos ao longo desta
pandemia demonstrando que Bolsonaro jamais assumirá o papel que tantos líderes
na história do mundo exerceram quando seus povos viveram tragédias. A nossa se
desdobra em vários campos, na saúde, na economia, na vida social e pessoal. Mas
Bolsonaro vive em seu mundinho como se a realidade não fosse essa fratura
exposta.
Ontem foi um dia de derrota para o presidente Jair
Bolsonaro, mas grande mesmo é a dor do país. No Brasil real contou-se de novo
mais de 400 mortos num dia, e ainda ouvia-se o eco da voz de Bolsonaro
escarnecendo —“lamento, mas e daí?” — quando se atravessou, na véspera, a marca
de 5 mil mortos. No seu mundo, Bolsonaro ficou irritado porque não conseguiu
nomear o amigo Alexandre Ramagem para a Polícia Federal. Na vida real, o país
vive a aflição, o medo, a solidão, a falta de ar, a morte sem os rituais de
despedidas, os enterros apressados, a longa espera nas filas por um direito, o
risco cotidiano.
No seu mundo, Bolsonaro ficou bravo porque encontrou o
limite do sistema de freios e contrapesos da democracia. O ministro Alexandre
de Moraes mandou suspender a posse de Alexandre Ramagem numa peça em que deixou
claro que não o fazia por qualquer idiossincrasia. Era um fato objetivo. Havia
o risco de se ferir o princípio da impessoalidade e de haver desvio de função
da Polícia Federal. Os indícios disso estavam na própria fala de Bolsonaro ao
tentar desmentir seu ex-ministro da Justiça Sergio Moro. No final do dia, ele
bateu na mesa e disse que recorrerá da decisão do ministro do STF. “Quem manda
sou eu”, disse ele. E está à beira de criar um monstro jurídico. Não se pode
recorrer da suspensão de um ato que ele mesmo revogou. Difícil a primeira
tarefa do novo advogado-geral da União. Ele sabe que é impossível recorrer de
uma causa sem objeto.
Mas pelo que se viu ontem nas posses, toda verdade pode ser
distorcida para agradar o presidente. O novo ministro da Justiça, André Luiz
Mendonça, foi muito elogiado porque teria sido uma escolha técnica. Elogios
talvez prematuros. Seu discurso foi político e com o uso de símbolos
religiosos. Chamou o presidente de “profeta”. Como teólogo, deve conhecer a
advertência bíblica sobre os falsos profetas. Está logo no primeiro Evangelho.
O de Mateus. Os frutos desse profeta do ministro André Mendonça já são bem conhecidos.
Até que ponto é possível suportar o ultraje? Foram tantos
nesses 16 meses, foram tantos antes das eleições, que o maior risco é o país
aceitar uma Presidência exercida dessa forma deletéria como se fosse natural.
Bolsonaro sempre ofendeu grupos sociais, fez disso a sua marca particular, um
marketing da agressão. Ele gosta de ofender os sentimentos e ferir valores.
Dos povos originários do Brasil veio uma lição ontem. Os
Waimiri-Atroari querem a publicação imediata do seu direito de resposta nos sites
da Presidência pelas inúmeras vezes em que foram atingidos por palavras
discriminatórias. Após um pedido do Ministério Público Federal, a Justiça
Federal do Amazonas determinou à União e à Funai que assegurem ao povo
publicação de uma carta nos sites do Planalto. Eles estão reagindo aos
“constantes discursos desumanizantes” e de crítica ao seu modo de vida nas
falas frequentes de Jair Bolsonaro. Certa vez, ele chegou a dizer que o “índio
está evoluindo, cada vez mais é ser humano igual a nós”.
Durante a pandemia tudo tem ficado mais claro. Ele não quer
exercer a Presidência. Ele quer gritar “quem manda aqui sou eu”, quando
encontra os limites da lei. Ele gosta do mandonismo, não do exercício dos
deveres da Presidência. Ele fala aos arrancos, porque não se dedica a entender
as questões de Estado sobre as quais tem que decidir. Ele diz “e daí?” porque
de fato não está nem aí. É isso que faz de Bolsonaro um presidente que
renunciou às suas funções, apesar de formalmente continuar no posto.
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