Durou menos de 24 horas a aposta de ministros civis e
militares de que o insurgente capitão fora domado. Depois do brando
pronunciamento da noite de terça-feira, o presidente da República mostrou que
sua maior missão é ocupar a tribuna da provocação. Em tuíte, compartilhou
depoimento (falso) de um feirante que exalta Bolsonaro e culpa os governadores
pelo pouco movimento. No fim, comentou: “Depois da destruição, não interessa
mostrar culpados”.
Como bedéis de um adolescente indisciplinado, os ministros
do Palácio do Planalto apagaram o tuíte, fizeram o rapaz pedir desculpas e
deram instruções para que a segurança impedisse a claque bolsonarista, sob o
comando diuturno do presidente da República, de vaiar os jornalistas que cobrem
sua saída do Palácio do Alvorada.
Comportado em rede nacional e debochado na rede social, o
presidente cumpre a bipolaridade com a qual inaugurou seu mandato. Faz passar
por doença o que é método. Se os ministros militares insistem na tutela, é
menos pela aposta na disciplina do capitão e mais pela ausência de alternativas
a uma situação que se agravou pelo isolamento institucional do presidente e
pelo avanço do coronavírus.
O Comando Militar da Amazônia confirmou casos da covid-19 no
Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus, reduto da elite do Exército
e referência mundial de treinamento. Some-se à preocupação com a preservação da
capacidade operacional das Forças Armadas, o avanço inaudito da covid-19 no
Distrito Federal, que combina a maior incidência de casos da Federação com uma
frágil rede de hospitais públicos. É no entorno do presidente passeador que ameaça
se concretizar mais rapidamente a tragédia italiana prevista pelo ministro da
Saúde: caminhões do Exército transportando pilhas de vítimas do coronavírus.
O imperativo de manter a ordem pública sob o comando de um
desordeiro cobrou um preço alto das instituições. A ordem do dia do Ministério
da Defesa, em 31 de março, retroagiu, em pelo menos três décadas, a publicidade
da visão das Forças Armadas sobre o golpe de 1964.
Depois de passar em branco durante os governos do PSDB e do
PT, a ordem do dia voltou a registrar a efeméride no primeiro ano do governo
Bolsonaro. A necessidade de fazer o contraponto com um governo militarizado
produziu um texto ponderado, beirando a auto-crítica: “Enxergar o Brasil
daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar
a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano – a capacidade
de aprender”.
Bem distinto daquele que, este ano, abriu e fechou pela
declaração de que 1964 é um “marco para a democracia”. Na pressa, rejeitou a
igualdade como utopia: “Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos
ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a
civilidade que regem as nações livres”.
O pacto pela preservação de Bolsonaro esgarçou ao limite as
relações institucionais. O tuíte do vice-presidente, enaltecendo o golpe
militar, é apenas sua evidência mais exposta. Destinava-se a sua própria
corporação, mas acabou servindo, aos que o acalentam como opção, de tira-teima
para a declaração de Bolsonaro: “Mourão é mais tosco do que eu”.
Em nenhuma instância, o consciente exercício da bipolaridade
presidencial se refletiu de maneira mais desgastante do que na redação da
proposta de emenda constitucional do orçamento da crise. Exigência do ministro
da Economia, Paulo Guedes, que alega receio de infringir normas fiscais ao
atender à demanda pela liberação de recursos, a PEC chegou a ser esvaziada por
liminar, nessa direção, do ministro Alexandre de Moraes.
Não satisfeito com a liminar, Guedes condicionou a liberação
do auxílio de R$ 600 reais aos informais à aprovação da PEC que, àquela altura,
já contava com quatro minutas. Na primeira delas, o comitê gestor da crise
seria presidido pelo ministro da Saúde, Henrique Mandetta, que comandaria uma
equipe de ministros, nenhum deles militares. O presidente da República, que
passeava em Ceilândia, foi ignorado.
Veio do Supremo o aviso de que não cabia ao Congresso
interferir na maneira como o Executivo se organizaria para tomar decisões. No
mesmo fim de semana, o ministro Gilmar Mendes foi chamado ao Planalto para
encontrar Bolsonaro. No dia seguinte, os redatores da PEC colocaram o
presidente na cabeça do comitê e lhe atribuíram sua composição.
Parlamentares reagiram. E se Bolsonaro montasse um escrete
de ouro, com Weintraub, Damares e Araújo? Nova redação definiu as Pastas que
integrariam o comitê, nenhuma delas comandadas pelos generais do Palácio. Até
mesmo o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, comandante do atual
comitê de crise, foi deixado de fora.
“Não queremos generais nisso”, justificou um dos envolvidos
na costura política. “Eles já foram avisados de que isso é um golpe?”,
perguntou um general, alertando para a possibilidade de que, aprovada a PEC,
nada impediria que Bolsonaro demitisse todos os ministros cujas Pastas lá
estavam listadas e nomeasse militares para seu lugar.
Na quarta-feira, dia para o qual sua votação foi pautada, o
texto amanheceu com Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, devidamente incluídos. Ao
Congresso, que terá oito assentos no Comitê, sem direito a voto, caberá vetar
decisões que “afrontem o interesse público”, redação que também desagradou
militares resistentes à prerrogativa do Legislativo.
No fim, o Congresso havia feito mais concessões do que
pretendia, mas esperava ter evitado que a gestão da crise se resumisse a um
dueto entre governo e Supremo. Para encorpar a PEC, os parlamentares acabaram
puxando para o texto as mudanças pretendidas pelo Banco Central para dar mais
liquidez ao mercado.
No meio desse vaivém, Bolsonaro sancionou a ajuda de R$ 600
aos informais. Com a PEC, cairá um dos obstáculos para que o dinheiro chegue na
ponta do desespero. Se Bolsonaro pretendia inocular nas instituições que o
isolam o vírus da desconfiança mútua, foi bem sucedido. Não passaria de um
festival de discórdia se o ingresso não fosse cobrado em vidas.
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