O isolamento
social imposto pela pandemia corrói valores até então intocáveis. O
nascer e o morrer deixam de ser pautados pela cultura, pela religião ou pelo
afeto.
A imagem aérea de cemitério
da cidade de São Paulo que o jornal norte-americano Washington Post
publica na primeira página de quinta-feira (2), com dezenas de covas abertas e
enfileiradas, à espera da multiplicação descontrolada de infectados, é, antes
de tudo, sinal de zelo administrativo diante da perspectiva de colapso
funerário que já atinge outros países.
O sepultamento ou a cremação deixam de ser cerimônias emotivas
de perda. É providência voltada para a proteção sanitária.
O caixão está fechado. Não há velório. Não há despedida. A
dor é infinita porque, assim como nos casos de desaparecimento forçado de
pessoa, sem a guarda do corpo, o ritual da morte não se completa.
A máxima, atribuída ao marquês de Pombal depois do terremoto
que destruiu Lisboa em 1755, repete-se no plano global: enterrar os mortos,
cuidar dos vivos e fechar os portos.
Há escolhas terríveis nos hospitais. Médicos italianos,
diante da falta
de respiradores, definem, entre os pacientes que se apresentam diante de
seus olhos, aqueles que têm melhores chances de sobrevivência. Os outros
morrem, pura e simplesmente.
Não há a rotina alegre de visitas, presentes e docinhos no
nascimento dos bebês, que avós, tios e amigos conhecem por fotografia ou vídeo.
Apenas um acompanhante “saudável” na maternidade. Não é só o
perigo de contágio. A gestação é um sobressalto. Temor e trauma fazem parte da
formação do feto.
É tudo tão estranho que, em nome da saúde, a negligência com
a própria saúde parece ser sábia.
Laboratórios de análises clínicas também são ambientes favoráveis
à proliferação do vírus: é melhor não fazer check-up e adiar a tomografia
agendada. Não vá ao dentista. Não faça caminhadas.
Filhos e netos não visitam idosos ou os parentes que fazem
parte dos grupos de risco.
Meninas e meninos sem escola, distante de professores,
amigos e desafetos. Crianças especiais sem acesso a terapias absolutamente
necessárias. Para onde se olha, a sensação é de perda.
O emprego vira pó. Empresas derretem. As ruas estão vazias.
A riqueza encolhe.
No Brasil, porém, ônibus,
metrôs e trens seguem lotados.
O trabalho compulsório (agora essencial) em supermercados e farmácias ou nas
portarias dos edifícios nos remete para resquícios da escravidão.
A privacidade desmorona pelo convívio ininterrupto com pessoas
amadas. Quanto mais pobres, menos metros quadrados há de espaço individual.
É possível estar com o analista pela internet, mas é
compreensível que o paciente não queira socializar seus sentimentos com marido,
mulher ou filhos.
É proibido bebericar no bar preferido. Não se compartilham
elevadores, salas de espera e copos. Usem máscara: mas não há máscaras para
comprar!
Os democratas conformam-se com a vigência do estado
policial, quem sabe inevitável para fechamento de comércios ou repressão de
vandalismo ou para conter os inimigos do isolamento —estrategicamente tão
importante. Para onde se olha, há corações partidos.
Lidar com a solidão e com o medo, imaginar o futuro, lavar
pratos e bater panelas: vai passar. Eu fiz a promessa de não mencionar seu nome
nesta coluna e cumprirei. Mas, sim, eu bato panela todos os dias, lá pelas
20h30. Contra essa gente indecente que está no Palácio do Planalto.
Luís Francisco Carvalho Filho
Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos (2001-2004).
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