O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para diretor-geral da
PF pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mostra que, se
o presidente Jair Bolsonaro pretendia ter pontes com a Corte, com suas recentes
indicações para a Advocacia- Geral da União e o Ministério da Justiça, a
pinguela despencou antes de estabelecida.
Procurador-geral da Fazenda Nacional, Levi Mello do Amaral
foi secretário-executivo do MJ na gestão Alexandre de Moraes, hoje relator de
dois inquéritos que cercam o mandato presidencial, o das “fake news” e da
manifestação do dia do Exército.
Além de segundo de Moraes no MJ, o novo AGU também é próximo
de Gilmar Mendes. Compõe com novo ministro da Justiça, André Mendonça,
ex-colega do ministro Dias Toffoli na AGU e seu candidato para a próxima vaga
no Supremo, uma dupla que prometia azeitar a interlocução com a Corte.
A pinguela começou a ser dinamitada em sua própria base. A
deputada Carla Zambelli, da tropa de choque bolsonarista, acusou Moraes, que
foi secretário de Segurança em São Paulo, de vínculos com o PCC. Apresentou
como única evidência o fato de o ministro “estar envolvido na causa de
investigar pessoas que fazem o bem pelo Brasil”.
Na primeira vez em que o STF interferiu numa nomeação do
Executivo, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a Casa Civil de
Dilma Rousseff, com base num grampo ilegal do ministro Sergio Moro, deu início
à queda da ex-presidente. Não foi a última.
Durante o governo Michel Temer, a ministra Carmen Lúcia
suspenderia a nomeação da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) e o
ministro Celso de Mello manteria a de Moreira Franco. Nenhuma delas abalou o
mandato presidencial.
Por controverso, Moraes achou por bem fiar sua liminar na
abertura de investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal,
autorizada por Celso de Mello com base nas denúncias de Moro. Deixa claro que é
a autoridade do decano que vai avançar os limites da Corte em relação aos atos
do presidente da República.
Assim tem sido antes mesmo da posse de Bolsonaro. No dia
seguinte à circulação de vídeo em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro
disse que bastaria cabo e soldado para fechar o Supremo, o então candidato pelo
PSL à Presidência enviou uma carta a Mello. Nela, dizia que as manifestações
“emocionais” da campanha se deviam à “angústia e às pressões sofridas”.
Mello não era presidente da Corte e se insurgira contra o
vídeo da mesma maneira que outros colegas, mas Bolsonaro justificava a escolha
do destinatário pela “conduta impecável” e pela “ponderação”.
O constitucionalista Diego Arguelhes (Insper) diz que a
atuação do ministro em defesa das minorias parlamentares pode ter despertado
empatia no então candidato. Mas ele também tinha ao seu lado Gustavo Bebianno,
que trabalhara no escritório de Sérgio Bermudes, e estava em condições de
instruí-lo sobre o destinatário que melhor representaria a reserva moral da
Corte.
O remetente logo descobriria que não tinha a menor chance de
dobrá-lo. O decano hoje simboliza um Supremo mais unido do que se viu nas
décadas marcadas por mensalão e Lava-Jato, pelo restabelecimento da ordem
constitucional. Dias depois, um coronel bolsonarista aposentado ofendeu a
ministra Rosa Weber e o ponderado ministro chamou-o de “imundo, sórdido e
repugnante”.
Com a posse do presidente, o tom subiria ainda mais. Na
reedição da medida provisória transferindo a demarcação de terras indígenas
para o Ministério da Agricultura, que sucedeu a decisão parlamentar mantendo-a
na Funai, o ministro não pediu vênia: “É preciso repelir qualquer ensaio de
controle hegemônico do aparelho de Estado por um dos poderes da República”.
Na escalada do confronto, passou a se dirigir diretamente ao
chefe da nação. Na nota em que reagiu a um vídeo compartilhado por Bolsonaro
comparando os ministros da Corte a hienas, identificou “atrevimento
presidencial [que] parece não encontrar limites na compostura que um chefe de
Estado deve demonstrar”.
Àquela altura, nenhum outro ministro ousara tanto. O outrora
desbocado Gilmar Mendes se tornara frequentador da corte bolsonarista na
companhia de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Celso de Mello, que nunca foi
de frequentar palácios, continuou vigilante em relação à escalada autoritária.
Em março, quando Bolsonaro engajou-se na divulgação de
passeata golpista, Mello pulou duas casas: “É uma visão indigna de quem não
está à altura do altíssimo cargo que exerce”. O ministro submeteu-se a uma
cirurgia e, ao voltar da convalescença, já em plenário virtual, resolveu
transpor sua indignação para os autos.
Pediu que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se manifeste
sobre denúncia por crime de responsabilidade de dois advogados, determinou que
a União devolvesse ao Maranhão ventiladores adquiridos pelo Estado, abriu
inquérito para apurar crime de racismo do ministro da Educação, Abraham
Weintraub, contra chineses e, finalmente, o mais importante, deles, deu início
à investigação sobre as denúncias de Moro contra o presidente. Tudo isso em uma
semana.
Conservador nos ritos e na interpretação da norma
constitucional e pouco afeito a abordagens emocionais, Celso de Mello parece
determinado a deixar sua marca sobre o futuro do estado de direito nos seis
meses que lhe restam de mandato. Um parlamentar viu na ênfase dada por Mello à
responsabilidade do presidente da República, a minuta de um pedido de
impeachment.
O PGR, alerta a constitucionalista Eloísa Machado (FGV), é o
condutor da investigação, podendo, inclusive, procrastiná-la. O titubeante
pedido de abertura de inquérito é sinal disso. Na opinião de um experiente
procurador, porém, Mello pode se valer de medidas cautelares, como aquela
incluída no inquérito para que Aras se pronuncie sobre a apreensão do celular
da deputada Carla Zambelli, com o intuito de destravar a investigação.
Um ex-ministro do Supremo, que convive com Celso de Mello há
décadas, antevê decisões que não deixarão alternativa ao procurador-geral da
República, senão denunciar o presidente. Daí pra frente, é outra história. Até
lá, a expectativa é de Celso de Mello, na comissão de frente, seja capaz de
manter recuados cabos, soldados e, sobretudo, o capitão.
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